Dezembro sempre vinha com pitada de frustração. Os amigos do Menino, excitados com os presentes de Natal, não percebiam a decepção de quem não tinha direito à festa natalina. Às vezes, na casa das carências, havia um prêmio de consolação, servido na mesa banhado em gordura. Os latkes, espécie de panquecas fritas de batata, desciam redondos de prazer. Apesar do verão de derreter viaduto, marca registrada do Rio, aquela bomba colesterólica de Hanucá caía bem. Apaziguava o espírito ferido por falta de uma bola nova ou de uma bicicleta que jamais vinha. Natal e Hanucá, próximos no calendário, distantes nas vivências.
Hanucá parece feita sob medida para os judeus seculares. Os religiosos a consideram uma festa menor, pela falta do Sobrenatural de Almeida no centro da trama original. É uma construção inteiramente humana. A história começa com Alexandre, o Grande, que conquistou Síria, Egito e Judeia. No início, e durante um século, ele e seus sucessores usaram uma tática sedutora para manter o domínio. Concederam liberdade de crença e autonomia administrativa limitada. Mimetizando o opressor, muitos hebreus assimilaram a cultura grega, incluindo linguagem, formas de vestir, etc. Serviam, não raro, de prepostos do poder dominante estrangeiro.
Já sob o reinado de Antíoco IV, a situação mudou drasticamente. O soberano, ditador clássico, reprimiu a prática da religião judaica, profanou o Templo de Jerusalém (forçando sacrifícios com porcos, por exemplo), perseguiu a população com violência. A asfixia provocou reação. Um grupo, liderado por Matatias Hasmoneu e seu filho, Judas Macabeu, iniciou uma guerra de guerrilhas que durou anos. A revolta foi vitoriosa. Tal como aconteceu, muitos séculos mais tarde, no gueto de Varsóvia, os guerrilheiros abateram também os colaboracionistas (no caso, os chamados hebreus helenizantes).
As celebrações pela vitória, que incluíram a reconsagração do Templo de Jerusalém, duraram oito dias, com muito acendimento de velas e júbilo, sem qualquer conotação religiosa. Era a festa da liberdade conquistada. A justiça foi feita pela voz das armas. Séculos mais tarde, rabinos tentaram se apropriar da narrativa dos acontecimentos, enxertando o chamado milagre de Hanucá. Segundo eles, o volume de óleo que só daria para queimar como vela no Templo por um dia, acabou durando oito. A partir disso, acende-se uma vela diariamente no candelabro de oito braços chamado de Hanuquiá.
O exemplo dos macabeus, como passaram à História os guerrilheiros, germinou em vários momentos diferentes. E não apenas entre judeus. No século XVIII, por exemplo, protestantes na Nova Inglaterra justificaram sua resistência ao império britânico citando a famosa máxima macabeia: “Resistência à tirania é obediência a deus”.
Em Pessach, considera-se uma mitsvá (que traduzo livremente como gesto nobre) ampliar o texto oficial que conta a libertação dos escravos hebreus no Egito antigo. Pois tomo para mim a tarefa de modificar as bênçãos que se dizem no acendimento das oito velas de Hanucá, incorporando a saga guerrilheira dos macabeus e adaptando-a aos nossos tempos. Ei-las:
Bendita seja a comunidade humana que luta contra a ignorância e seus filhotes.
Bendita seja a comunidade humana que rejeita todos os tipos de discriminação e luta para eliminá-los.
Bendita seja a comunidade humana que defende a preservação ambiental e a vida no planeta.
Bendita seja a comunidade humana que abomina a dominação de classe, que explora o trabalho da maioria em benefício da minoria.
Bendita seja a comunidade humana que não aceita a censura a qualquer tipo de manifestação do pensamento e da criação.
Bendita seja a comunidade humana na busca permanente pela interação das culturas, sem supremacismos.
Bendita seja a comunidade humana que constrói valores internacionalistas, ultrapassando os marcos limitados das fronteiras de todos os tipos.
Bendita seja a comunidade humana que trabalha para ser reconhecida apenas como comunidade humana, sem divisões artificiais ou fratricidas.
Amém.
Abraço. E coragem.