Na madrugada da sexta-feira passada, dia 20 de novembro, tive um pesadelo. Despertei e anotei algumas frases para não esquecer: “Caminhava por um terreno difícil e percebi que havia avalanches de terra feitas com escavadeiras. Percebi que iria morrer, mas lutava para me salvar”. Foi um pesadelo, o sonho, guardião do sono, falhou na censura e passaram imagens assustadoras e acordei.
Logo pensei no dia anterior para buscar os restos diurnos, que é a porta de entrada para se interpretar um sonho. Escrevi sobre a abolição da escravatura, a queima dos arquivos, a vida cotidiana dos escravos negros. Os arquivos da escravidão foram queimados a mando de Ruy Barbosa, para esconder a violência dos brancos escravocratas. Lembrei também de uma cena da queda de uma barragem em Brumadinho da empresa Vale, matando centenas de pessoas.
Meu pesadelo foi uma mortificação, um masoquismo, talvez tenha me identificado com os negros, pois aprendi ainda adolescente que judeus e negros eram vítimas de crueldades. Associei ao livro de Sartre cujo título, “Racismo”, associa os judeus e os negros como vítimas do ódio na História. As mortificações vividas no pesadelo se associam a sofrimentos na infância e na vida. Na verdade, todos somos masoquistas, uns mais, outros menos. Variações de intensidade, de qualidade, dependendo de muitos fatores, como as identificações. Às vezes, a gente não suporta a felicidade e sonha com sofrimentos sem fim, e ao se acordar, mesmo assustado, se alivia que foi só um pesadelo, bom para se pensar e aliviar o gozo masoquista.
Entretanto, assim como há sonhos e pesadelos noturnos, a vida mesma oscila entre sonhos e pesadelos no cotidiano. Na manhã do dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, fico sabendo do assassinato, por espancamento, do João Alberto Silveira Freitas, no Carrefour de Porto Alegre, na Volta do Guerino. O sadismo branco contra os negros integra a história brasileira no que se definiu como racismo estrutural da vida brasileira. O país ainda não acertou as contas com seu passado, ao contrário, pois 75 por cento dos assassinados pela polícia são negros.
É difícil articular o que ocorre com a pessoa por um lado e com a sociedade na qual se vive. Logo após a Primeira Guerra Mundial, na primavera de 1919, Freud pensou em como explicar a psicologia das massas seduzidas pela guerra. Já em fevereiro de 1920 começa a trabalhar esse tema, e um ano depois conclui a obra: “Psicologia das massas e análise do Eu”. No final do primeiro parágrafo, escreveu: “a psicologia individual é simultaneamente psicologia social em um sentido mais amplo, mas inteiramente legítimo”. A seguir define o caminho das identificações para articular o individual e o social através dos pais, irmãos, professores, o médico, os líderes ocorrem identificações. Freud, assim, reafirma o quanto uma pessoa é dependente da vida em sociedade na qual pode ser passivo diante de um líder, ou buscar a liberdade para viver.
A vida, em geral, oscila entre sonhos e pesadelos. Em 2020 vivemos pesadelos aqui e no mundo, com limitações da vida cultural, saudades de encontros presenciais com longas conversas. Diante das dores é bom sonhar que um dia seremos vacinados e voltaremos a conviver com mais alegria ainda. A luta contra o racismo crescerá graças à militância negra e dos brancos que se unem a essa luta. Se o sonho noturno é individual, o sonho social envolve as parcerias. Unir as vozes na luta antirracista creio ser um dever e uma honra para todos os humanistas. Na luta antirracista me vem à mente uma frase de Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”. Pergunta talmúdica: Se não rompermos com os silêncios agora, quando será?
P.S. Hoje às 20,15 no Instagram da Editora Artes e Ecos estarei com o psicanalista Renato Mezan falando sobre a recente segunda edição do livro “Seria trágico… se não fosse cômico- Humor e Psicanálise. Espero, quem puder, na live que promete ser bem humorada.