O País vive uma pandemia e passa pelo pior momento de sua história, sofrendo devastações de toda ordem. É traumático ter que se enfrentar com um Brasil vulnerável, sem direção, com um governo que ataca às ciências, as artes, a natureza, a saúde, a educação e ainda despreza mais de 165 mil famílias enlutadas. Parte do choque decorre do espanto de como pode estar acontecendo tantas maldades no país cantado como o da cordialidade, do samba e do futebol, das praias e das florestas. São as narrativas históricas dos brancos que transformaram a crueldade da escravidão na liberdade que a boa Princesa Isabel fez ao assinar a Lei Áurea em 1888.

Muito já se repetiu de que somos um povo sem memória, mas essa abolição da memória foi construída. Desde o início da nossa História não houve interesse em registrar a violência que ocorreu aqui, pelo contrário. Uma das provas é que no dia 14 de dezembro de 1890, Ruy Barbosa, ministro da Fazenda, assinou um despacho para destruir milhares de arquivos da escravidão. Eles continham as origens dos escravos, identidades, preços e destinos. As justificativas da decisão foram porque a escravidão era uma instituição funesta, e a destruição dos documentos era pela honra à pátria. Em nome da honra dos que comandavam a Pátria, se impunha destruir como os negros eram mercadorias e o quanto foram maltratados. Para salvar a honra de poucos se aboliu a memória de todos. Essa política de destruir os vestígios dos crimes se seguiu no século XX e agora, com torturas e desaparecimento de mortos e a indiferença do país como se fosse tudo normal.

As memórias não são apenas sobre o passado, algo que passou e sobre as quais a gente conversa. As memórias são plurais, seguem tendo efeito hoje, bem como amanhã. Quem não sabe o que ocorreu consigo no passado, ou quem sabe só os fatos, termina não se apropriando de sua história, sabe pouco das origens, até do seu nome próprio. Já a memória social, que integra a individual, é um fator importante na construção da História.

No final do século XIX, quando se queimavam as memórias sobre a escravidão no Brasil, emergia um interesse pela memória de restos, resíduos esquecidos na Europa. O historiador Carlo Ginzburg escreveu que aumentaram os estudos sobre as memórias na arte, na psicanálise, nas histórias de detetive. Em termos de reflexão sobre a memória, ocorreu uma nova valorização das imagens psíquicas, mesmo as mais “absurdas”, que eram negligenciadas. Exemplos foram as obras de Proust, Freud e Walter Benjamin, que buscaram criar novas pontes entre o ontem, o hoje e o amanhã.

Freud gostava de ter em seu consultório peças arqueológicas para despertar em seus pacientes a curiosidade sobre o passado infantil recalcado. Uma de suas frases famosas foi: “Wo Es war, soll Ich werden” – “Onde o Isso era, o Eu deve advir”. Ou seja: uma análise deve permitir que o paciente desenvolva um trabalho de investigação sobre si, abrindo brechas nas certezas imaginárias. Aprender a perguntar a si mesmo e desejar novas respostas, abrindo assim os caminhos para pensar suas convicções. Abolir a memória a nível pessoal é recalcar para o inconsciente o indesejado, o sofrido, o traumático. Abolir a memória social é construir uma narrativa mentirosa dos que comandam o País, como se eles fossem os verdadeiros patriotas.

A luta contra a abolição da memória brasileira levou os negros a recordar o dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra. Nesse dia no ano de 1695 foi assassinado o Zumbi dos Palmares que lutou pela liberdade, contra a escravidão. A luta antirracista é uma luta de todos, pela honra de todos. Para entender o violento país de hoje, é preciso conhecer a História de ontem, para construir o amanhã.

P.S. Ontem foi assassinado, na véspera da Consciência Negra, João Alberto Silveira Freitas, negro, num Supermercado de Porto Alegre. João foi barbaramente golpeado sem dó nem piedade como rev