“Ao meu pai, pela sua verve combativa, por seu amor pelos filho e netos, por nos ensinar a nunca fechar os olhos a injustiça”
Quando eu tinha uns 4 anos de idade, minha alegria eram os finais de semana que meu pai ia pintar, me dava tintas, pincéis e telas e me deixava fazer minha arte, ao lado dele, enquanto ele fazia arte de verdade (deixa me gabar um pouquinho…papai é psiquiatra, trabalhou desde sempre com Dra. Nise, foi Diretor do Museu Imagens do Inconsciente e junto com Mario Pedrosa escolhia os melhores trabalhos para catálogos. Para quem não sabe, o Sr. Mario Pedrosa foi um dos maiores críticos de arte do Brasil. E amava os desenhos do meu pai). Pouco tempo atrás fui achar semelhanças entre os desenhos de papai e os de Harry Clarke, o melhor ilustrador dos livros de Edgar Allan Poe.

Desenhos com algo sombrio, muitos feitos a nanquim, com detalhes que sempre me fascinaram. Haja elaboração! rs.

Eis a alegria de uma garotinha de 4 anos.

Um dia papai adoeceu. Muito. Teve uma hepatite quase mortal e acabou ficando isolado de mim, na casa dos meus avós. Só que aos 4 anos eu já era eu. E NUNCA ia deixar o meu pai sozinho. Lembro do desespero da minha mãe, dos receios da minha avó, mas fui impávida, não teve quem me dissuadisse, levando comigo meu talismã, meu cachorrinho de rodas e boné, o Xereta, brinquedo da década de setenta, que eu puxava com uma cordinha.

Alguns dias meu pai estava melhor, outros dias não, uma cor amarela que eu nunca vi, muitas vezes minha avó me colocava perto do meu avô, que ria de me ver correndo com meu cachorrinho pela casa. Quase perdi meu pai. QUASE. Ele conseguiu vencer a doença, e está aqui, até hoje. Brigamos muito. Porque somos dois geniosos. Mas mesmo sem o Xereta, nunca deixei de acompanhá-lo nos momentos complicados. Passou por outras situações, deu a volta por cima e está com a saúde melhor que a minha, se duvidar.

Ah, porque estou falando disso??? Impulsividade é fogo. E ao mesmo tempo existe uma enorme vontade de repartir o vivido. Pessoas muito próximas sabem. Mas é a primeira vez que me abro dessa forma.

Como alguns sabem, em 2014 o pai da minha filha, meu marido, teve um derrame. Coisa séria. Mais séria ainda foi como as coisas caminharam. Não interessa aqui, nesse momento,falar. O fato é que minha filha tinha 8 pra 9 anos. E podem acreditar, NINGUEM sofreu mais que ela. Um dia estava sendo mimada pelo pai, no outro dia só sabia que ele estava num lugar chamado UTI. Só que diferente de mim, que sou de choro fácil, Alice é cedro do Líbano, como escreveu Miguel Torga. Não me mostrava as emoções porque via como eu estava mal. Sumindo. Pesando menos de 45 quilos. Sem força. Sem acreditar que tudo aquilo tinha acontecido. Eu só sabia que ela sofria através do colégio. Um choro, um abraço. O banheiro, chorando na cozinheira da escola que ela adorava. Soube disso muito depois, porque acho que nem as pessoas tinham coragem de me contar devido ao meu estado.

Aí num sábado eu deitei. Tinha comida pra ela. O computador estava no nosso quarto. Eu sabia que ela estava lá. Morávamos as duas num apartamento no Recreio. Ela me oferecia comida, eu não conseguia engolir. Eu não conseguia levantar. Passei dois dias ali, catatônica, inerte. E então, minha pequena hebreia, como apelidou para sempre um amigo meu, disse: CHEGA. Me levou o pior Nescafé que tomei na vida. Me deu o comprimido de antidepressivo que eu passei aqueles dias sem tomar. Escolheu um vestido azul pra mim, que julgara bonito. E foi me carregando, eu trôpega, para o banheiro. Ligou o chuveiro. Me deu um banho. Me enxugou. Me ajudou a me vestir. Viu que eu estava febril (passei por três pneumonias até saber que era artrite), abriu as janelas da sala e ligou pra quem? Pra o vovô. Acho que meu pai nunca fez um percurso tão rápido da Freguesia para o Recreio. Fomos ao hospital. Sim, outra pneumonia , aliada a depressão e lá foi ele, de mala e cuia, cuidar de nós duas. Minha mãe estava longe, são 4 filhos, 5 netos, ela viajou um pouco mais tarde. E me deram comida na boca. E me fizeram beber todo o líquido possível do mundo. Fiquei boa, apesar de nos momentos complicados os dedos ainda entortarem de dor.

Durante um bom tempo tive vergonha disso. Fui confidenciar a história da minha filha para uma pessoa que achava amiga e hoje não suporto, falei dessa situação da Alice ter me dado banho, me arrastando ate o banheiro, naquele momento de fraqueza e ela, que não é e nunca será a melhor mãe do mundo, falou: ”Coisa horrorosa! Vc é uma irresponsável! Vê se sua filha ainda pequena, sofrendo ,tem que fazer esse papel. Quem é a mãe na história??? Coisa mais horrorosa trocar de papéis”. Nem vou entrar no mérito do que ela deixou o filho passar, senão fica pesado e a gente tem que manter longe. Aquilo me deixou mais culpada ainda. Que mãe horrorosa que eu devo ser???

Eu me torturava. Como deixei minha filha me ver daquele jeito? Como mostrei essa fraqueza quando deveria ser forte? Só passei a contar isso para os mais íntimos quando li isso do Almodóvar, numa resenha, sobre seu filme Julieta (que ainda não tive tempo de ver e sei que vai mexer por demais comigo):

Talvez o mais comovedor de Julieta seja como são descritas, com poucos traços, as relações entre mãe e filha quando o pior, seja a doença ou a loucura, está presente. Bastam apenas alguns segundos focados em um rosto, o da atriz Susi Sánchez, ou um gesto, o de uma menina dando banho em sua mãe deprimida, numa cruel inversão de papéis. Almodóvar recorda que vem de um lugar onde isso é comum: as filhas cuidam das mães, as mulheres cuidam de outras mulheres. Essa raiz manchega está presente no filme…”

A única pessoa que não me julgou: Meu pai.

Alice não tinha um Xereta, mas de certa forma, muitos anos atrás, também invertemos os papéis. E isso nada mais é que amor

PS: Esse texto foi escrito para o meu pai no Dia dos Pais, em 2016.Trata-se de algo pra lá de intimo e durante 4 anos permaneceu escondido no Facebook, só os muito próximos tiveram acesso a ele. O tempo porém é o melhor remédio e decidi dividi-lo com vocês. O pai da Alice continua muito mal, mas não é sobre isso que quero falar. E sim sobre quando a vida passa uma rasteira na gente, e mostramos o que somos. Demasiadamente humanos. Hoje estamos caminhando, levando nossas vidas, aquela menina se transformou numa mocinha altiva e meu pai, que muitos aqui conhecem , o Dr Bahiense, continua firme.