Em tempos de milhares e milhares de mortos, cresceu a morte no imaginário. Pensar na morte, recordar os mortos, é perceber as cicatrizes no coração que podem sangrar com lágrimas. São os sofrimentos das separações, e quando o desapego é impossível, se revelam os laços eróticos com o morto, e cai à sombra da melancolia. Os queridos mortos vivem na gente, tanto na consciência como no inconsciente, através dos sonhos, sintomas e atos falhos.
O livro de Freud, “Psicopatologia da vida cotidiana”, é o livro dos diferentes atos falhos, que começa com o esquecimento de um nome próprio estrangeiro. É o caso Signorelli, pintor esquecido numa conversa sobre os costumes dos turcos quanto ao sexo e à morte. As causas do esquecimento do nome do pintor são os pensamentos reprimidos: a morte e a sexualidade. Portanto, pensar os mortos envolve conhecer os laços afetivos com ele, as identificações.
Identificação é a mais precoce manifestação de ligação de sentimentos com outra pessoa, é um processo psicológico pelo qual um bebê assimila um aspecto, uma propriedade do outro, e assim tanto se forma como se transforma. A personalidade se constitui pelas identificações com irmãos, tios, todos que são marcantes e integram as identificações de cada um.As identificações são mantidas pelos desejos inconscientes dos progenitores, que marcam cada pessoa já na escolha do seu nome próprio.
Os nossos mortos vivem em nós, às vezes, no erotismo do luto, e nas dificuldades do desapego. Os mortos costumam visitar nos sonhos, ademais a gente, ao envelhecer, fica aqui e ali mais parecido aos progenitores. A questão é como cada um constrói seu espaço próprio, mais livre do poder desejante dos pais. A pergunta “Quem sou eu?”, quem é mesmo cada um, tem a ver com as identificações, a pluralidade das pessoas psíquicas que formam a psique- alma em grego.
No livro “Sobre a morte”, do escritor Elias Canetti, ele escreve que tinha sete anos quando seu pai morreu subitamente em casa. Elias estava na rua brincando e sua mãe gritou várias vezes para ele: “Meu filho, você está brincando e seu pai está morto!”. Elias buscou saber os porquês da morte de seu pai, de quem ele tanto gostava, e para isso sempre tentou averiguar, até que, 23 anos após a morte do pai, sua mãe fez uma confissão. Ela se entusiasmou com um médico que a tratou e contou isso ao pai de Elias, que ficou abalado. O casal discutiu, e no dia seguinte ele enfartou. Canetti foi o Prêmio Nobel de literatura em 1981, e seu livro mais importante foi “Massa e poder”. Durante vinte e cinco anos buscou entender o comportamento humano diante o autoritarismo, em especial as grandes ditaduras da primeira metade do século XX.
Durante quatro décadas escreveu frases reflexivas sobre a morte que foi reunida no seu livro sobre a morte e se opôs sempre ao conceito de que o homem é um ser para a morte. Defendeu que o com ênfase que o homem é um ser contra a morte, que é preciso combater a morte. Talvez fosse uma forma de protestar pela morte precoce do pai, pois escrever sobre a morte é também escrever sobre o pai morto. Sonhou com uma solidariedade entre os vivos contra a morte Diante dos mortos se apresentam muitos caminhos, e cada um faz o que pode com seu cemitério particular. No velório do pai de Michael Jordan, que foi assassinado, o jogador chorava copiosamente e sua mãe disse a ele: “Seja grato, seja grato” e isso o acalmou.
Nossos mortos vivem em nós, e neste ano a pandemia acentuou o medo da morte, e a luta pela vida. Elias Canetti, nas suas reflexões sobre a morte, se revelou um combatente solidário com os seres vivos contra a morte. Todos os profissionais da saúde, todos os seres de bem, deveriam se opor aos governos que trabalham a favor da morte.