A democracia na América está doente e, como era sabido, o remédio convencional das eleições não será suficiente para a curá-la. Num corpo político e social com fraturas intransponíveis, sem espaço de diálogo, compromisso e portanto de consenso, é praticamente impossível afirmar valores morais, princípios republicanos, e até legitimidade baseados na vontade popular. Os 4 anos de Trump provocaram uma crise crescente de confiança nas instituições, com uma parte da população convencida de que a democracia é apenas um artifício dos políticos.
O espetáculo lamentável que assistimos não é a velha clivagem entre esquerda e direita, entre progressismo e conservadorismo, é a oposição entre a decência e a falta de escrúpulo, entre a mentira e a verdade. Se a democracia hesita nesta escolha, é porque se tornou uma banal formalidade.
Em 2016, a América elegeu Donald Trump com a sensação de que a democracia liberal se tornara uma farsa. Em 2020, voltou a lhe dar mais de 67 milhões de votos por acreditar que essa farsa continua.
A vitória anunciada de Joe Biden permite acreditar numa convalescença longa e penosa; a reeleição de Trump confirmaria provavelmente a sua agonia.
Se os americanos elegeram há 4 anos um fanfarrão, demagogo e despreparado, suspeitava-se que o fizeram por raiva ou por protesto contra a sua adversária, representante da política tradicional. Mas como diz o editorial do jornal Público, de Lisboa, “se tantos americanos insistiram em Trump em 2020, depois de anos de erros, de mentiras, de logros, de falsas promessas, de perturbações e ameaças, de cumplicidade com a guerra racial e cultural, de falta de transparência em questões cruciais como os impostos, é porque a democracia se tornou uma moeda de escasso valor facial.”
Trump despreza a democracia. Prova disso, nessas eleições voltou a se comportar como um líder autoritário numa democracia liberal. Transformou a Casa Branca em sede de campanha. Quebrou uma antiga tradição: o vencedor espera que o derrotado reconheça a derrota, antes de proclamar vitória. É este desprezo pela democracia, pelas suas regras e pelos seus rituais que torna o resultado tão cheio de consequências.
Some-se a isso a hipermidiatização da figura de Donald Trump. Praticamente toda a eleição se fez em torno das suas afirmações e da sua personalidade. Houve um grau de personalização do debate político digno de um regime ditatorial. As ideias políticas de Donald Trump, apesar de incoerentes e perigosas, foram amplamente divulgadas, contestadas ou ridicularizadas, mas nunca desprezadas a ponto de não ganhar espaço. Trump foi onipresente, dentro e fora dos EUA. O mesmo não se pode dizer de Joe Biden. A personalidade e ideias políticas do candidato democrata foram, quase sempre, transmitidas como uma vaga boa alternativa ideológica e moral às ideias e à personalidade execrável de Trump.
Por enquanto, a única conclusão segura é que os Estados Unidos continuarão a ser um país profundamente dividido. “Depois de um choque econômico e de saúde pública, depois de quatro anos de drama exasperante, depois do impeachment, os americanos não rejeitaram de forma enfática nem Donald Trump, nem o trumpismo”, escreveu Janan Ganesh no Financial Times.
Não sou daqueles que acham que Biden e Trump são dois lados da mesma moeda. A vitória de Biden será fundamental, pois saberemos então que é possível derrotar a ignorância, o desprezo, a mentira, a desonestidade, a discriminação, o elogio do racismo e da supremacia branca, as violações quotidianas dos direitos humanos. Em outras palavras que é possível barrar a ascensão do populismo nacionalista e retrógrado da extrema-direita. Os Estados Unidos não mudarão radicalmente, o futuro presidente continuará a pregar o America First, mas nós, democratas, compreenderemos que o tempo da pós-verdade não é inelutável. E isso já é muito. Enfim, vamos respirar.
Será preciso também tirar um ensinamento óbvio do trumpismo, o de que não há democracia na desigualdade extrema. Num país onde os habitantes dos subúrbios empobrecem e 1% dos americanos controla 40% da riqueza nacional, a tolerância acaba, a revolta cresce e a democracia se degrada.
É neste pântano que nascem fenômenos como Trump. Ele não é um mero acidente.