O paciente, de 86 anos, traz a queixa de incapacidade de realizar certas tarefas que exigem atenção e memória. De alguma forma, sente-se frustrado, pois no seu sentimento, as falhas não ocorriam antes. Apresenta-se lúcido, consciente, orientado, demonstra grande cultura e fino senso de humor. Trabalhou em sua vida formal com assuntos complexos de duas grandes empresas de tecnologia e formou-se na mais competitiva das universidades. Não obstante um passado “agitado” sob o ponto de vista neurocirúrgico (2 neurocirurgias por problemas diferentes, a última para drenar o sistema ventricular por uma hidrocefalia de pressão normal, bem sucedida), tem vida totalmente independente, realizado todas as suas tarefas sem ajuda. Atualmente, trabalha administrando o seu próprio patrimônio. Suas comorbidades são hipertensão arterial e diabetes, ambas totalmente controladas com as respectivas medicações.
Diante da queixa, o neurocirurgião pede uma avaliação neuropsicológica completa.
A especialista surpreende-se com os resultados, sendo que todas as pequenas “torturas” cerebrais são correspondidas por respostas muito acima da média para a idade, muitas delas, no “teto” dos valores estatisticamente obtidos. Os dados são então retornados ao neurocirurgião, que entende que não há medidas adicionais necessárias sob o ponto de vista cirúrgico, pois o paciente apresenta desenvoltura cerebral irretocável e excepcional.
Mas tudo isso não resolve o problema do nosso paciente, que certamente continuará com a sensação de deficiência.Se o corpo está “perfeito”, de onde pode vir a sensação de impotência, frustração e inferioridade que atormentam o nosso paciente?
Às vezes os pacientes nos perguntam: “O que é a depressão”? “O que é a ansiedade”? “O que é a angústia”? “Por que eu sinto isto ou aquilo”?
São perguntas, que sob o ponto de vista objetivo de tudo aquilo que a ciência e a tecnologia podem alcançar, não têm resposta. Atribuir um mal-estar mental – e emocional – qualquer a um atributo químico que será minimizado por um outro químico pode ter efeito prático, mas absolutamente insuficiente para esclarecer de onde exatamente vêm as nossas emoções, como se formam, como se perpetuam, como aparecem ou como desaparecem. Entender o funcionamento cerebral como uma massaroca de neurônios e feixes de comunicação organizados em um aspecto físico peculiar e universal (pelo menos para a imensa maioria dos indivíduos) naquilo que chamamos de encéfalo é absolutamente frustrante. Se os grandes comportamentalistas animais já concluíram que os cachorros são pessoas, imagine isto transposto para um cérebro proporcionalmente muito maior que é o dos humanos.
Gosto de comparar os nossos pensamentos e emoções com o que vemos no céu. A formação, movimentação, desaparecimento e variedade das nuvens representa o resultado físico de fenômenos caóticos muito complexos, que nem os computadores mais poderosos já construídos são capazes de prever com absoluta precisão, embora o já alcançado seja notável. E quase todas as questões relacionadas ao binômio emoção/função quase sempre terminam no dilema do “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha”. Assim, a terra, o corpo da vida, e o Sol, o sopro permanente de tudo o que aqui vive sobre a terra, seus movimentos, ondas de energia, gravidade, termodinâmica, forças químicas, elétricas e magnéticas, tudo isso produz as lindas imagens das nuvens no céu, que parecem, na minha abstração, algumas expressões do “pensamento” da grande Gaia.
A ciência nos permite “desmontar” as coisas complexas em partes, nos permite alcançar os detalhes até um nível sub-atômico de tudo o que acontece. Mas o Universo ainda é cheio de mistérios. A física clássica vem sendo humilhada por um turbilhão de fenômenos totalmente incompreendidos mesmo após Einstein e Bohr (e todos os seus discípulos). Sabemos hoje que desconhecemos em torno de 80% do Universo. O que quer dizer que o Universo é composto por uma maioria de coisas que sabemos que existem, mas não temos a menor idéia do que sejam.
No mundo do nosso paciente também existem coisas que podem ser conhecidas em profundidade, o que até produzem certo deleite. Mas não são suficientes para resolver suas expectativas, frustrações e sensação de impotência. Alguma coisa em sua alma (podem usar qualquer modelo para a compreensão de “alma”, não apenas os esotéricos) permanece incomodada e eventualmente pode causar algum sofrimento.
Hora de chamar o psicanalista, que na maioria das vezes sabe como a coisa toda funciona, independentemente de conhecer suas partes nos profundos detalhes. De uma certa forma, ele será um bom “meteorologista”, lendo o céu do nosso paciente, interpretando-o, identificando padrões peculiares, e guiando nosso paciente no caminho de entender que está ao alcance dele mudar o clima.