É pó, é pedra

A vida é feita de cacos. Quem tentar reuni-los, vai se frustrar. Assim falou Eliav, pai do consagrado coreógrafo israelense Ohad Naharin. Tinha razão. Por mais potente que seja a cola, jamais se consegue recompor o vaso original. A curiosidade científica, no entanto, vive desafiando esta lógica. Arqueólogos são curiosos profissionais, de fragmentos tentam remontar civilizações e rituais, de restos dispersos buscam as pegadas do Homem.

A nave Osiris-Rex, no espaço desde 2016, acaba de recolher amostras do asteroide Bannu, que está a mais de 320 milhões de quilômetros da Terra. Qual é a importância de raspar este pedregulho imemorial ? Acontece que ele é uma espécie de DNA viajante em busca de nada. Na certidão de nascimento consta que existe há 4,5 bilhões de anos, tão velho quanto o Sistema Solar. Em suas entranhas podem existir pistas sobre a gestação da nossa família de planetas. É atrás disso que correm os cientistas. Uma curiosidade tão compreensível quanto aquela que sempre levou o Menino a imaginar Bessarábias e Polônias, origens de uma história que jamais será totalmente contada.

Há nisso aí uma contradição. Enquanto se destrói metodicamente o planeta, extinguindo espécies vegetais e animais, permanece agudo o interesse de responder uma pergunta-chave: de onde viemos ? Não vale, claro, responder com a ironia do Carlos Heitor Cony. Não hesitava na resposta: vim do Lins de Vasconcelos e vou para a Lagoa.

A distância percorrida pela Osiris-Rex equivale a duas vezes a distância entre a Terra e o Sol e mais de 830 vezes a da Terra e a Lua. Estamos vasculhando essa imensidão para recolher algumas gramas de pó e pedra, que só devem estar de volta em 2023. Tudo nessa missão impressiona e mostra a capacidade inventiva da nossa espécie. Atingiu-se um corpo celeste lá nos cafundós com uma precisão molecular. O “beijo”, que durou seis segundos, precisou levar em conta a baixíssima gravidade do asteroide e sua rotação permanente. A margem de erro foi de um metro.

Podemos, então, bater no peito e dizer que somos os maiorais, os reis da cocada cósmica ? Bem, entre o lançamento da Osiris-Rex e seu retorno, terão morrido de fome cerca de 63 milhões de terráqueos. Outros 14 milhões, de diarreia. Somos bambas em olhar outras galáxias, insensíveis para enxergar a vizinhança. Distraídos, pisamos nos astros. E nos corpos.

Vindas de tão longe, guardo a esperança de que as amostras do Bennu, se não desvendarem os segredos da nossa origem planetária, solucionem outros mistérios igualmente transcendentes. Onde está meu time de botões, campeão invicto dos Jogos Infantis, patrocinados pelo Jornal dos Sports, em 1963 ? A escalação ainda sei de cor: Ari, Joubert, Jadir, Bolero e Jordan, Carlinhos e Gerson, Joel, Henrique, Dida e Babá. Onde estão os ossos de Dana de Teffé ? A crônica policial do Rio e, sobretudo, a memória do Cony, merecem uma resposta definitiva. Onde ficou o manual de convivência com os meus mortos ? Um bom rascunho está aqui, bem à mão, no poema Reabilitação, da polonesa Wisława Szymborska. Não basta. Se o roteiro completo estiver perdido no espaço, terei que reconstruí-lo. Quem sabe convidando os espectros para um shnaps amigo ? Pelo sim, pelo não, já vou botando a mesa e separando a garrafa.

Com paciência de monge, espero pó e pedras, emaranhados em mistérios e respostas.

Abraço. E coragem.

Corpo e Alma

O paciente, de 86 anos, traz a queixa de incapacidade de realizar certas tarefas que exigem atenção e memória. De alguma forma, sente-se frustrado, pois no seu sentimento, as falhas não ocorriam antes. Apresenta-se lúcido, consciente, orientado, demonstra grande cultura e fino senso de humor. Trabalhou em sua vida formal com assuntos complexos de duas grandes empresas de tecnologia e formou-se na mais competitiva das universidades. Não obstante um passado “agitado” sob o ponto de vista neurocirúrgico (2 neurocirurgias por problemas diferentes, a última para drenar o sistema ventricular por uma hidrocefalia de pressão normal, bem sucedida), tem vida totalmente independente, realizado todas as suas tarefas sem ajuda. Atualmente, trabalha administrando o seu próprio patrimônio. Suas comorbidades são hipertensão arterial e diabetes, ambas totalmente controladas com as respectivas medicações.

Diante da queixa, o neurocirurgião pede uma avaliação neuropsicológica completa.

A especialista surpreende-se com os resultados, sendo que todas as pequenas “torturas” cerebrais são correspondidas por respostas muito acima da média para a idade, muitas delas, no “teto” dos valores estatisticamente obtidos. Os dados são então retornados ao neurocirurgião, que entende que não há medidas adicionais necessárias sob o ponto de vista cirúrgico, pois o paciente apresenta desenvoltura cerebral irretocável e excepcional.

Mas tudo isso não resolve o problema do nosso paciente, que certamente continuará com a sensação de deficiência.Se o corpo está “perfeito”, de onde pode vir a sensação de impotência, frustração e inferioridade que atormentam o nosso paciente?

Às vezes os pacientes nos perguntam: “O que é a depressão”? “O que é a ansiedade”? “O que é a angústia”? “Por que eu sinto isto ou aquilo”?

São perguntas, que sob o ponto de vista objetivo de tudo aquilo que a ciência e a tecnologia podem alcançar, não têm resposta. Atribuir um mal-estar mental – e emocional – qualquer a um atributo químico que será minimizado por um outro químico pode ter efeito prático, mas absolutamente insuficiente para esclarecer de onde exatamente vêm as nossas emoções, como se formam, como se perpetuam, como aparecem ou como desaparecem. Entender o funcionamento cerebral como uma massaroca de neurônios e feixes de comunicação organizados em um aspecto físico peculiar e universal (pelo menos para a imensa maioria dos indivíduos) naquilo que chamamos de encéfalo é absolutamente frustrante. Se os grandes comportamentalistas animais já concluíram que os cachorros são pessoas, imagine isto transposto para um cérebro proporcionalmente muito maior que é o dos humanos.

Gosto de comparar os nossos pensamentos e emoções com o que vemos no céu. A formação, movimentação, desaparecimento e variedade das nuvens representa o resultado físico de fenômenos caóticos muito complexos, que nem os computadores mais poderosos já construídos são capazes de prever com absoluta precisão, embora o já alcançado seja notável. E quase todas as questões relacionadas ao binômio emoção/função quase sempre terminam no dilema do “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha”. Assim, a terra, o corpo da vida, e o Sol, o sopro permanente de tudo o que aqui vive sobre a terra, seus movimentos, ondas de energia, gravidade, termodinâmica, forças químicas, elétricas e magnéticas, tudo isso produz as lindas imagens das nuvens no céu, que parecem, na minha abstração, algumas expressões do “pensamento” da grande Gaia.

A ciência nos permite “desmontar” as coisas complexas em partes, nos permite alcançar os detalhes até um nível sub-atômico de tudo o que acontece. Mas o Universo ainda é cheio de mistérios. A física clássica vem sendo humilhada por um turbilhão de fenômenos totalmente incompreendidos mesmo após Einstein e Bohr (e todos os seus discípulos). Sabemos hoje que desconhecemos em torno de 80% do Universo. O que quer dizer que o Universo é composto por uma maioria de coisas que sabemos que existem, mas não temos a menor idéia do que sejam.

No mundo do nosso paciente também existem coisas que podem ser conhecidas em profundidade, o que até produzem certo deleite. Mas não são suficientes para resolver suas expectativas, frustrações e sensação de impotência. Alguma coisa em sua alma (podem usar qualquer modelo para a compreensão de “alma”, não apenas os esotéricos) permanece incomodada e eventualmente pode causar algum sofrimento.

Hora de chamar o psicanalista, que na maioria das vezes sabe como a coisa toda funciona, independentemente de conhecer suas partes nos profundos detalhes. De uma certa forma, ele será um bom “meteorologista”, lendo o céu do nosso paciente, interpretando-o, identificando padrões peculiares, e guiando nosso paciente no caminho de entender que está ao alcance dele mudar o clima.