Floresce um novo umbigo na barriga do artista (Wislawa Szymborska)
Difícil sonhar cercada pelas carências da Baixada Fluminense. Com horizonte estreito em Belford Roxo, o desejo de compreender e sentir o mundo da arte parecia muito distante. Silvia Schiavone enfrentou transporte precário, livros caros, violências real e presumida. O bacharelato em Artes pela UERJ veio, finalmente, tão suado que parecia um delírio. E então o pesadelo. O mercado, sempre ele, não a queria. Arte ? Cultura ? Quem precisa disso ? Viu-se forçada a trocar sonhos e sensibilidades por vassoura, detergente, balde, sobrevive fazendo faxinas. Semeou sutilezas, aterrissou asperezas.
Sei da falta que faz a invenção da realidade que a arte proporciona. Cresci com pouca música ao redor. Dois discos de vinil, Tchaikovsky e Schubert, eram meu ralo minifúndio. Vitrola de segunda mão na casinha de vila. A pintura flagrada por meus olhos famintos era um quadro imenso, medíocre, na casa dos avós. Uma família aristocrática saudando a chegada do bebê: C’est um fils, monsieur ! Levou tempo para me descolar daquele academicismo barato. Para compreender, como percebeu o poeta Ferreira Gullar, que a arte existe porque a vida não basta. E também que não existe apenas para ocupar espaço numa parede nua.
As celebrações pelo 250º aniversário do nascimento de Beethoven foram abortadas pela pandemia. Ele, um dos maiores gênios de todos os tempos, foi salvo pela arte. Literalmente. Aos 32 anos, atormentado pela surdez progressiva, escreveu um testamento, encaminhado aos irmãos Carl e Johann. É um documento dramático. Fala da angústia de não poder se comunicar, de se ver condenado à solidão, da perda do sentido mais importante para dar vazão à criatividade. Lamenta não poder ouvir a flauta de um camponês ou o canto de um pastor. Pensa várias vezes em se suicidar. No entanto, e é ele quem o diz, deveu “à virtude e à arte o fato de não ter terminado minha vida com o suicídio”. Alguém concebe o mundo, a galáxia, os buracos negros, sem as sinfonias de Beethoven ? Ou seus concertos e sonatas para piano ? A arte não apenas o salvou, mas nos redimiu neste mundo que demanda sentidos.
Quem assistiu o documentário Wild man blues lembrará da cena final. Woody Allen, clarinetista amador, acompanhado de sua banda de jazz tradicional, tinha acabado de voltar de uma excursão à Europa. Lá, seu talento sempre foi mais reconhecido do que nos Estados Unidos. Pois bem, junto com a namorada Soon-Yi Previn vai almoçar com os pais, em New York. O encontro parece ter sido dirigido pelo ectoplasma de Salvador Dali. Papai e mamãe tratam Woody como uma criança deficiente. O pai insiste que ele, cineasta consagrado, teria sido mais bem-sucedido como … farmacêutico ! A mãe subitamente incorpora todas as ídishe mames e critica a escolha amorosa do constrangidíssimo Woody. Seria melhor escolher uma boa moça judia, sentencia a senhora Nettie. A conclusão não pode ser outra: Woody Allen foi salvo pela sétima arte, que lhe deu régua e compasso para fugir daquele universo limitado. À custa de muita terapia e invenção. Taxímetro, ou egoímetro, sempre ligado.
Com a intensificação da saída de judeus da União Soviética, aí pelos anos 80, aconteceu em Israel uma história interessante. Numa repartição pública, um funcionário estava na lanchonete tomando café. De repente, leva a mão ao peito e cai no chão. Imediatamente o balconista o socorre e salva-lhe a vida. Era um cardiologista soviético, que não tinha conseguido se empregar em sua especialidade. Trocou jaleco e bisturi por avental e canudinhos. Como Silvia Schiavone, a moça de Belford Roxo, não conseguiu exercer sua arte.
Antigamente, os adultos ralhavam com as crianças que faziam arte. Era sinônimo de travessura. Pois acho que hoje precisamos, mais do que nunca, de arteiros, de sonhadores barulhentos, do improviso anti-coturno. Há, como bem sabemos, um morcego na porta principal. E ele não está para brincadeira.
Abraço. E coragem.