Pega na mentira, pega na mentira/Corta o rabo dela, pisa em cima/Bate nela, pega na mentira (Erasmo Carlos)
Alguém aí há de lembrar que mentira tinha perna curta, podia ser castigada com água e sabão na boca. Se a lorota fosse cabeluda, pimenta malagueta no lugar de água e sabão, e um chinelo voador, xerife implacável, aterrissava em pobres glúteos. Tudo ficou démodé.
O discurso de Bolsonaro na ONU, manual completo de conversa fiada, já foi suficientemente mastigado por gente gabaritada. Depois de lê-lo, fiquei com uma dúvida existencial, para a qual não tenho resposta categórica e na qual se encadeiam outras. Por que alguém mente, mesmo sabendo que pode ser facilmente desmascarado ? Por que, especialmente na era da informação instantânea, tanta gente acredita em mentiras ? E não apenas acredita, mas divulga e exalta. A mesma gente que, por exemplo, reclamaria do açougueiro que trapaceia no peso da alcatra, aceita e propaga lorotas como mamadeira de piroca, cloroquina e kit gay. Indignação seletiva, sem dúvida, mas por quê ?
Passo apenas algumas impressões, sem a menor intenção de esgotar essas questões, que considero essenciais para compreender a vala negra em que estamos metidos. Acho, antes de mais nada, que há uma espécie de identidade grupal que fecha questão para confirmar um conjunto de valores. Quando Damares Alves, cuja máscara facial me assusta cada vez mais, afirma que os holandeses pregam a masturbação em meninos a partir dos sete meses de idade e manipulação das vaginas desde cedo nas meninas para que tenham prazer na fase adulta, ela tem duas intenções. Reafirmar, com teatralidade histérica, o consenso reacionário da sua base sobre temas delicados (sexualidade, educação dentro da família) e desqualificar/criminalizar todos os grupos que pensam e fazem diferente. A mentira, nesse contexto, é argamassa que assegura a unidade nos espaços individual (psicológico) e coletivo (político). No caso de Damares, e não apenas dela, adornada por doses industriais de dissimulação e terrorismo religioso.
A falsificação da realidade se torna mais fácil com a multiplicação dos emissores de notícias e opiniões. Não faz muito, o grande formador de opinião no país era o Jornal Nacional, TV aberta. A imprensa escrita não dava nem para a saída. Essa fronteira já caducou, atropelada pelas redes sociais. Dois em cada três brasileiros têm acesso à internet. As redes sociais são as novas agências noticiosas, cada participante replicando ou produzindo conteúdos sem compromisso com a honestidade. É novamente a identidade grupal que julga o que é falso. Não à toa, informações científicas, de assimilação complexa, são ignoradas em benefício de interesses primitivos/levianos. As campanhas contra vacinas, boçalidade perigosa, ganham musculatura em redes sociais. Para os que acham que vacinas causam autismo ou alteram o DNA dos vacinados, não adianta argumentar com dados concretos. Vale mesmo é a posição do líder, seja ele profeta, guru, síndico ou presidente. Todos querendo assegurar seu espaço de poder incontestado. Tarefa facilitada pela cruzada obscurantista na área da educação. Mito e minto são faces da mesma moeda.
Todos já mentimos. Quem é que não deu uma desculpa esfarrapada para faltar a um compromisso aborrecido ? Ou praticou uma mentira piedosa, sonegando de um doente grave a informação sobre seu estado ? O problema é quando a mentira sai da clandestinidade e disputa espaço político, social, comportamental. Grosso modo, o enfrentamento da encrenca se resume a responder: quando os tempos já não são mais de Iskra (A Centelha, pequeno jornal, circulação modesta, produzido por exilados russos no início do século XX, vital na propagação de ideias revolucionárias) mas de deepfake (inteligência artificial usada para “produzir” realidades), o que temos para oferecer à massa que se informa pelas redes sociais ? Não adianta, e é no mínimo contraproducente, apenas xingar, mandar para os quintos, indignar-se. Especialmente se os berros ecoam apenas para os já convertidos. De resto, o que se espera dos mentirosos patológicos ? Que mintam, ora essa.
Abraço. E coragem.