Se esquecêssemos a desigualdade social refletida tão simples e claramente na nossa presença ali, o povo de Ajuda vivia bem e ainda não tinha sido tocado pelo “Brasil Novo”. Sem interesse, malícia, nem conhecimento para explorar turistas, ganhavam a vida usando seus barcos artesanais para trazer seu sustento do mar. Alguns alugavam quartos ou cozinhavam para fora para completar o orçamento. O pessoal da terra era curioso a nosso respeito e nós a respeito deles. Às vezes, nos honravam com convites para conversar e ouvir suas histórias sobre a comunidade, suas lendas, o mar e a natureza que nos cercava.
“Tem vários pescador que viu uma luz branca aparecê de noite no meio da pescaria. Quando eles via de perto, aparecia uma mulher vestida de branco lá de dentro. Todos os que viram aquilo acabaram morrendo no mar de um jeito ou de outro.”
“U mió mês de se pescar é março, a corrente traz muito peixe do Sul para cá, o mar fica mais frio e de vez em quando nóis pega até tainha.”
“Aqui dá cação, principalmente por volta do mês de junho, mas é ruim pras rede. Eles rasga tudo e depois nóis tem que remendá tudo de volta. A gente mata eles com peixeira, mas é, difícil. O bicho é grande, maior que sinhô. A carne nem é muito boa, é dura. A gente tem que cozinhá várias veiz até amassiá, que nem carne de sol.”
“Nos rio daqui tem peixe sim sinhô, mas é tudo pequeno. Tem muçum, o sinhô conhece? Já experimentaste? É feio como a peste, mas é muito saboroso. Tem que saber cozinhá.”
“Nadá?! Nós não sabe nadá não, quando um cai na água, nóis vai lá e traz ele de volta do jeito que dá.”
“Ôceis num pesca no Rio de Janeiro, não? E aprendeu a nadar por quê? Oxente, se eu tivesse o dinheiro que oceis tem, mandava fazê uns três barco e fazia os outro pescá para mim. Que nem aquele minimo de Salvador tá fazeno. Eu ia ficá rico que nem ele!”
Os visitantes mais sortudos que estavam lá há mais tempo eram convidados para sair nas pescarias, mas isso nunca aconteceu comigo.
O pessoal de fora, todos na faixa dos vinte a trinta anos, era uma mistura de estudantes universitários, professores, jornalistas, artistas e profissionais de todos os tipos. As conversas longas e frequentes refletiam a paz e a beleza do lugar e a explosão de liberdade de expressão que se seguiu à repressão do regime militar. Todos faziam questão de dar a sua opinião sobre tudo; de futebol à ecologia, da política ao sexo.
“Quando a eletricidade chegar aqui, vai mudar tudo e para pior. Eu sou do Mato Grosso, lá tem um monte de aldeias como essa. Quando modernizam, o povo mais humilde acaba virando favelado e quem se dá bem é o pessoal das cidades vizinhas maiores que chegaram sabendo como lidar com dinheiro.”
“Pois é, eles são muito ingênuos. Não valorizam o que possuem. Eu sou do interior do Paraná, e lá é igual. Os nativos, não têm parâmetros para comparação. Os caras de fora vêm na malícia e deitam e rolam em cima deles.”
“Vai ser uma pena ver essa natureza toda ser transformada em resorts à lá americana mas pode crer que vai virar.” Profetizou um.
“Pois é, mas ficar aqui sem luz elétrica é bom demais, a gente tem que aproveitar enquanto dá.”
Todos concordaram.
“Mudando de assunto, se vocês querem ver natureza de verdade, têm que ir para Caraíva. No ano passado fiquei lá o verão inteiro. Foi muito, mas muito bom!”
“Caraiva? Os nativos disseram que não dá para chegar lá nem a pé!”
“Que dá, dá, mas é difícil por causa da maré e dos rios no caminho. Teve um maluco de Belo Horizonte que saiu de Trancoso e conseguiu, mas levou dois dias. A gente foi de barco. Tem um que sai de Porto Seguro toda sexta-feira, leva umas três horas.”
“E como é que é lá?”
“Muito louco, parece uma aldeia perdida no meio do Amazonas. Tem uma reserva indígena do lado, os caras nem falam português direito, só que o bicho pega com os nativos. Tem muita briga, principalmente depois que os índios descobriram a cachaça. Quando bebem, enlouquecem.”
“Você entrou em alguma confusão?”
“Ah, não, com o pessoal de fora eles são diferentes. A gente dá roupa, traz ferramentas, facões e isqueiros. Por isso adoram a gente.”
“É contra a lei, não é?”
“É, pela lei eles nem poderiam comprar esse tipo de coisa mesmo se tivessem grana, mas os caras precisam para lidar com o mato. Fiz amizade com um monte deles. Eles são muito doidos, não conhecem o conceito de propriedade privada.”
“Como assim?”
“Tipo assim, você vai para a praia e quando volta tem um monte de índio sentado na tua sala, tranquilos, sem pedir desculpas nem permissão. Teve um dia eu estava transando com a minha namorada e quando a gente acabou, nos demos conta que tinha uns cinco ou seis debruçados na janela olhando para nós em silêncio. Só faltaram aplaudir… minha namorada ficou puta!”
Todo mundo deu risada.
Quando o papo ficava mais sério, todos concordávamos que esses eram os últimos dias de um mundo no qual a natureza era maior do que o homem.
“Épocas de mudanças são um problema, decisões que parecem pequenas acabam tendo consequências enormes.” Falou um cara mais velho que, se não me engano, era professor de universidade. “Essa geração está presenciando toda essa devastação e vai ser cobrada pelo que deixou fazer e pelo que não fez no futuro.”
“Pode crer, vão dizer que deixamos a coisa rolar.” comentou um hippie bom de percussão.
O professor continuou: “Não sou muito otimista, acho que vamos ser vistos como os porcos que estragaram o planeta em nome de farra.”
Uma menina com cara de estudante de mestrado emendou: “É verdade, somos o vírus e a cura, tudo depende das decisões que vamos tomar ou que vão tomar por nós. O xis da questão é acreditar ou não que a gente pode fazer uma diferença.”
Discussões à parte, havia algo de especial no ar. Nenhum de nós jamais havia sentido esse tipo de conexão coletiva antes. Era como se estivéssemos em uma realidade paralela, destilada por séculos de ideais utópicos e pela camaradagem criada na resistência clandestina ao regime. Naquele paraíso tropical, essa proximidade permeava festas, a música, risos, relacionamentos e amizades que aconteciam. Elas tinham uma qualidade e uma sinceridade muito diferentes do que normalmente aceitaríamos como realidade imutável nos grandes centros urbanos.
*
A experiência não tocou Davi como a mim. A meu ver, ele estava se reprimindo ao escolher se misturar com uma galera de universitários mais caretas. Eles eram parte importante das conversas, mas participavam somente marginalmente de nossa “sociedade secreta”. Não estando ligados à erva, perdiam um elemento essencial. Não era uma questão de tirar uma onda ou de se enturmar por estar fumando maconha, mas pelas dimensões e perceptivas que ela parecia abrir nos papos e até na integração com os arredores.
Uma frase de efeito do Gabeira resumia bem a diferença entre nossas perspectivas: “Sem tesão, não há solução.” Esse era o pensamento dos envolvidos naquela microrevolução quixotesca. Nela, as coisas se resumiam a ações ao invés de palavras. Queriamos um mundo onde as pessoas vivessem mais proximas à natureza – a interna e a externa, sem distinções -, sem hierarquias, principalmente a hierarquia da mente sobre o corpo. Ninguém queria saber de dogmas, tanto à esquerda quanto à direita, muito menos as vindas dos altares da vida. Naquele verão utópico, quem precisava do peso da história, da escola, da tradição e da ciência pairando sobre suas cabeças?
O caminho para o fim da nossa amizade culminou quando conseguimos rachar uma cabana maior com três garotas de Brasília que ele havia arranjado perguntando ao pessoal local. Assim que as conheci, as achei feias e certinhas demais e portanto, fora da minha zona de interesse. A antipatia foi mútua: minha atitude de carioca descontraído que não estava nem aí para as praticidades de uma convivência diária contrastava com seus esforços em serem sociáveis e seus pedidos para que dividíssemos as tarefas domésticas. Talvez estivessem certas ao me considerar um riquinho preguiçoso e mimado, acostumado a ter uma mãe e uma empregada sempre correndo atrás dele. Só que com 17 anos, era imaturo demais para compreender isso e as descartei como “mocréias” chatas.
Um dia após a praia, já de saco cheio da minha preguiça, exigiram que eu preparasse a refeição daquele dia. Avisei que nunca tinha cozinhado na vida, mas, talvez achando que isso fosse uma desculpa esfarrapada, se recusaram a ouvir e me forçaram a embarcar na primeira aventura culinária da minha existência. O fogão era uma grelha apoiada em alguns tijolos que ficava na área atrás da casa. Meu primeiro passo procurar por lenha seca e papel para acender o fogo, o que era quase impossível com o vento que estava soprando. Depois que tive a ideia de pegar uma cartolina que encontrei para proteger a chama, finalmente consegui. Quando as chamas diminuíram, seguindo as explicações do Davi, coloquei uma panela velha sobre a grelha, com água, óleo, sal e o espaguete.
Como bom filho de Aries fiquei agachado curtindo as chamas arderem e aproveitei o fogo para acender uma ponta que achei no bolso. Tudo estava correndo bem até levantar para adicionar os ovos. Enquanto afundavam na água fervente, percebi que o resto dos ingredientes não estavam borbulhando como deveriam. Quando cutuquei com o garfo, senti que o macarrão tinha se tornado uma massa uniforme grossa e grudenta. Mesmo para um iniciante era óbvio que aquilo estava errado. Só que quanto mais tentava concertar a coisa, mais ela lutava de volta dificultando os movimentos do garfo. O que era para ser uma refeição à base de espaguete se degenerou em um bloco de massa incomível. Para tornar as coisa ainda pior, percebi que os ovos haviam sumido lá dentro. Comecei a escavar a “coisa” numa tentativa de salvá-los, mas o garfo ficou preso antes de desaparecer naquela deformidade.
Depois de um pânico inicial, achei aquilo engraçado. Respirei fundo e tomei coragem para dar a notícia dentro da casa.
As meninas estavam esperando com fome.
“Aê, vocês não vão acreditar, o macarrão virou um tijolo e engoliu os ovos e até aquele garfo. Vocês querem ver? Tá hilário!”
“Como assim?”
“O macarrão ficou todo grudado e acabou, sei lá, fundindo num bloco de massa sólido. Nem tô conseguindo nem tirar da panela.”
“Não estou acreditando, você sabia que a panela é da casa? Sabe quanto custou a massa e os ovos? Não deve saber? A empregada não foi comprar, né?”
“Olha só, foi um acidente!” Elas estavam sérias e nervosas e eu não estava gostando do rumo que a conversa estava tomando. “Está todo mundo de prova que avisei que nunca tinha cozinhado na vida.”
“Como é possível um marmanjo da tua idade não saber cozinhar um macarrão?!”
“Isso não vem ao caso. Eu avisei, foi um acidente, se vocês quiserem eu pago o macarrão de vocês, mas baixa a bola aí, porque gritar não tem nada a ver.”
“Ah, e você vai pagar o nosso jantar?”
“Compra mais macarrão, cozinha um arroz, sei lá, se é para pedir desculpas já pedi, só não enche!”
Havia coisas melhores a fazer do que ouvir aquelas três garotas gritando comigo e saí da cabana, deixando elas falando sozinhas. Mais tarde, naquela mesma noite, caiu a última gota. Estávamos todos num boteco, e depois de beber demais, a mais nova, que era a mais sossegada e a mais atraente das três, me pediu para a trazer de volta para a casa porque estava passando mal. Estava bêbado também e no portão nos beijamos. Quando entramos e já estávamos prestes a finalizar a coisa, as outras duas entraram como um foguete, chegando perto de me agredir fisicamente. No dia seguinte me colocaram para fora. O Davi, que já estava farto das minhas doideiras, também não gostou e ficou do lado delas.
Peguei minhas tralhas resignado e um tanto zangado e fui bater na porta da cabana de uns uruguaios camaradas que me acolheram na hora. Só que não demorou muito para descobrir que o clima na casa dos caras era caótico demais, até para mim. Era gente entrando e saindo da casa 24 horas por dia para zoar e se chapar. Por outro lado, talvez pelo acontecido, o Davi decidiu voltar ao Rio mais cedo do que o planejado. Agora sozinho no Sul da Bahia, carregando o gosto amargo da rejeição, seguindo recomendações, resolvi me mudar para Trancoso, o próximo vilarejo ao sul.
…