Ao Alvaro Costa e Silva, o Marechal, pela inspiração involuntária
Gaaarrafeiro ! Camiseta regata, bigode farto, às vezes boina, tamanco de madeira machucando a calçada, lá vinha aquele personagem empurrando o burro sem rabo. À espera de cascos velhos de garrafa que lhe rendiam alguns centavos. Era o português de almanaque, imigrante pobre que enfeitou bairros do Rio com seu sotaque carregado, sim senhor, doutoire, pança nos balcões de botecos oferecendo tremoços, seus pequenos varejos. Uma joia da nossa identidade.
Às vezes, os sons vinham adornados por aromas irresistíveis. O lig-lig, vendedor de pirulitos de açúcar queimado e biscoitos doces, se anunciava por uma pequena matraca. Algodão doce, terror dos pais e paraíso dos dentistas, envolvia o ambiente com a antessala do prazer. Nos finais de semana, o chamado para o almoço nos levava para o angu judaico, de apelido mameligue. O fubá, levemente endurecido e salpicado com doses generosas de queijo, era cortado pelos adultos com um barbante. Fascínio daquele ritual, que combinava os quase sussurros da pequena família com o aroma ancestral.
Pouco resta destes tipos, engolidos por uma modernidade cada vez mais impessoal. Ainda ouço o chamado do vassoureiro, vez por outra passa por aqui alguém comprando ferro velho. Desapareceu o amolador de faca, que chamava a atenção improvisando um instrumento musical. Usava a grande roda, que afiava facas e tesouras, para emitir um som agudo, friccionando-a contra uma haste de metal. Hoje, com facas que cortam até a luz dos teus olhos, o simpático amolador foi arquivado na gaveta de obsoletos.
Não se trata de nostalgia barata, agravada pela sensação de conviver com um mundo que se despedaça. Personagens e situações sobrevivem, a seu modo, na memória afetiva, nos diálogos que sugeriam. Um dia, como tudo, desaparecerão de vez. Ocorre que, como dizia o Barão de Itararé, há no ar mais do que aviões de carreira. As relações de trabalho por via remota ganharam grande impulso, e me pergunto se isso não é apenas um primeiro, e largo, passo para que as relações pessoais caminhem nessa direção. Estaremos nos tornando seres bidimensionais ?
Em artigo recente, Fernando Gabeira aborda a questão de forma inteligente. Com ironia, ou não ?, disse: “O país se transformou num imenso centro espírita, e nós baixamos nos computadores de conversa que chamamos de lives, mas poderiam também ser chamadas de deads”. O segundo tempo de qualquer encontro, quando as pessoas relaxam, tomam um cafezinho e trocam dois dedos de prosa, agora some na névoa virtual. Sei de um grupo de leitura, que se reúne mensalmente. Compartilham textos curtos e conversam sobre eles. Finda a leitura, sentam por algumas horas em torno de comes e bebes, e a vida corre frouxa, leve, importante. Os encontros estão suspensos e não acho que zoombidos os substituem. Os sentires são tridimensionais.
A vida em sociedade é cada vez mais mediada por máquinas e a velocidade das inovações não para de crescer. Acaba de surgir um programa de computador capaz de entender qualquer frase, de escrever textos complexos e coerentes. Consegue replicar o comportamento de personagens de livros, dando-lhes voz para opinar, por exemplo, sobre quando será a próxima pandemia. A ficção científica já se fez uma interrogação essencial: existirá um momento em que a máquina criará, por conta própria, um caminho independente do programador ? Ou, como desdobramento, conseguirá desligar-se dos humanos e criar territórios virtuais autônomos ? Como o computador Hal, do filme 2001: uma odisseia no espaço, e os androides do Exterminador do futuro.
Melhor não rir dessas hipóteses. O Homem, sempre curioso, está avançando em áreas até aqui tabus. Vejam só isso. Pesquisadores alemães e japoneses identificaram o gene regulador do desenvolvimento do córtex cerebral humano. Inseriram-no em embriões de micos, depois transplantados para o útero de uma fêmea mico. Em cem dias, verificaram que o cérebro do mico transgênico começava a adquirir configurações semelhantes ao dos primatas maiores, que somos nós. O laboratório conseguiu imitar o que a natureza levou milhões de anos para aprimorar. Analisando a experiência, o neurocientista Roberto Lent cravou: “Os computadores inteligentes podem ser controlados. Poderão sê-lo também os macacos humanizados, homens reinventados ?”. No que eu aconselho os cientistas: corram para rever O planeta dos macacos (o primeiro, com o Charlton Heston) !
Abraço. E coragem.