Ai de ti, Rio de Janeiro !

Inspirado em Rubem Braga, criador da imperatriz das crônicas (Ai de ti, Copacabana !)

Jacob e Wilhelm, dois alemães muito criativos, entenderam o forrobodó. No século XIX, contaram a minha história. Vinha eu despreocupada numa estrada de terra, quando um carroceiro me atropelou. Fui socorrida, sem maiores estragos, por um jovem camponês. Agradecida, fiz-lhe uma promessa: como sou inevitável e imprevisível para todos, disse que não o visitaria antes de enviar mensageiros. Assim, o susto se diluiria no tempo.

Anos depois, bati na porta do camponês. Apavorado, protestou. Você não disse que antes me enviaria mensageiros? É sempre assim, suspirei, nunca sou bem-vinda. Eu não lhe enviei mensageiros ?, perguntei ao pobre homem. A Febre não te jogou na cama ? A Vertigem não te desorientou ? A Dor de Dente não estremeceu tuas bases ? O Lumbago não te fez pedir socorro aos ancestrais ? Acima de tudo, meu irmão Sono não te fez lembrar de mim todas as noites ? Dito isso, transportei-o para a Noite Sem Volta. Um poeta brasileiro me chamou de Indesejada das Gentes. Ah, Jacob e Wilhelm são mais conhecidos como Irmãos Grimm.

Certo dia, envolvida na colheita eterna, ouvi alguém assobiar e cantar uma valsa. Bonitinha. Falava de uma gente feliz, de céu, mar, gente despreocupada passando pela calçada. Por fim, a declaração de amor: Rio de Janeiro, gosto de você. Fiquei desconfiada. Será que os relatórios de atividades dos meus mensageiros valem tanto quanto o currículo do Carlos Decotelli ? Os recados não foram passados ?

Ai de ti, Rio de Janeiro !

Quem pensa que nasci com o bispo chapado, não entendeu meus recados. Há um século, supervisionei a expulsão dos pobres do centro da cidade, desmontando, a golpes de jato d’água, o morro do Castelo. Enriqueci especuladores e inaugurei o êxodo que hoje se espalha pelas periferias abandonadas. Tinha know-how do processo que transformou escravos libertos em fantasmas urbanos, sem direitos, sem sombra. Será que fui muito sutil ?

Ai de ti, Rio de Janeiro !

Fui o alterego da degradação de tua natureza. Nos anos 1970, seduzi Sérgio Dourado e Gomes de Almeida Fernandes. Não me decepcionaram. De suas pranchetas saíram monstrengos de concreto e bairros estéreis. O pessoal do Pasquim, uma turma que me aplicou dribles de almanaque, sintetizou aquele período num hipotético nome de condomínio: Désir d’Argent. Hipotético, mas, cá entre nós, muito verossímil. A cidade, ferida pelo ouro de tolo, se afastou da imagem romântica da boa vizinhança, da conversa no portão da casa, do moleque soltando pipa, do campinho de pelada, do pé descalço que subia na mangueira, da favela idealizada, da bisnaga quente que o padeiro trazia na bicicleta, em enormes cestas de vime.

Ai de ti, Rio de Janeiro !

E vieram os emergentes da Barra, as gerações que não conheceram nada além do território fortificado de seus condomínios, os alçapões travestidos de moradias, os viadutos engolindo silêncios, os paredões de concreto adulterando a paisagem, a miséria centrifugada pela desigualdade estrutural. Aos poucos, sou paciente, ganhei musculatura, confirmei alianças e cumplicidades. Vivo meus anos dourados. Nesta cidade, derreteram-se noções de solidariedade, de pertencimento a uma vontade comum, de reconhecimento do Outro. Como uma doença, a população elege quem a odeia e despreza. Parece reprise do filme – um dos meus prediletos – Invasores de corpos.

Pensando bem, a valsinha assobiada precisava de uma boa revisão. Vou trocar umas ideias com o Antonio Maria. Gente feliz ? Há controvérsias. Estou perto de concluir meu trabalho. Com a colaboração valiosa do presidente da República, que afirma ser o uso de máscara contra a Covid-19 “coisa de viado”. Também conto com o esforço genocida dos que se aglomeram, sem proteção, em bares e praias, na mureta da Urca, em festas e bailes. A resistência, empacotada em gritos e sussurros, não dá nem pra saída.

Vocês foram avisados.

Ai de ti, Rio de Janeiro !

Ai de ti.

Abraço. E coragem.