Erich Fried (1921-1988) é um dos mais importantes e interessantes poetas de língua alemã de todos os tempos, e é também um artista que com frequência revisito, pois sua obra é extremamente rica e sempre me traz novas indagações e reflexões. Judeu austríaco de Viena, é um dos grandes representantes da ‘poesia política’ e foi um convicto esquerdista, sempre consciente sobre o mundo e as sociedades ao seu redor. Seu trabalho é repleto de questões identitárias e existencialistas e sua condição judaica é muito presente, seja de forma explícita ou implícita.
Eu poderia falar por horas sobre Fried – me identifico bastante com ele enquanto “judeu de língua alemã” – mas o intuito deste artigo é específico: quero trazer um de seus mais vigorosos e claros poemas (e que o coloca também em um rol de polêmica). Trata-se de ‘Höre, Israel’ (‘Ouça, Israel’), de 1967, que consiste em forte crítica às políticas israelenses frente os árabes. Este faz parte de um ciclo de poemas, todos com temática política, e foi publicado no ano em que foi escrito no tradicional jornal esquerdista alemão ‘Konkret’, que existe até hoje. Em 1974 o ciclo foi transformado em um livro, também intitulado ‘Ouça, Israel’.
Eu não era vivo em 1967, e não posso avaliar exatamente o quão realista era este poema naquela época. Mas sei que hoje, na Era Netanyahu, ele é infelizmente mais real e atual do que nunca. O verdadeiro artista muitas vezes antevê o futuro da sociedade, e acredito que Fried – caso tenha “exagerado” na época (como clamam alguns que o criticam) –, certamente (e de maneira quase profética) não criou nenhum exagero no que diz respeito aos dias de hoje.
Vamos ao poema. (Eu mesmo o traduzi e não sei se há outra tradução para o português, mas aproveito para dizer que não acredito em tradução de poesia. Como amante desta arte, penso que só se pode assimilar e compreender um poema plenamente em seu idioma original. Mas acredito que esta tradução funciona suficientemente bem para veicular ao leitor o conteúdo, que é o que mais nos interessa aqui.)
Ouça, Israel
Quando fomos perseguidos
Eu fui um de vocês.
Como posso continuar a ser
quando vocês se tornam perseguidores?
O anseio de vocês era
serem como os outros povos
quem os assassinaram.
Então agora vocês são como eles.
Vocês sobreviveram
àqueles que lhes foram cruéis.
A crueldade deles
permanece viva agora em vocês?
Vocês ordenaram aos vencidos:
“Tirem os seus sapatos”
Assim como o bode expiatório vocês
os lançaram no deserto
na grande mesquita da morte
onde sandálias são areia
mas eles não assumiram o pecado
que vocês quiseram lhes impor
A impressão dos pés descalços
na areia do deserto
sobrevive às marcas
de suas bombas e tanques.
O poema foi escrito em ocasião à Guerra dos Seis Dias. Em sua publicação Fried adicionou uma nota de rodapé que explica que na quarta estrofe ele se refere a um desagradável episódio ocorrido no fim do conflito: os egípcios capturados na guerra, ao serem libertados, teriam sido obrigados pelos israelenses a tirarem suas sandálias, tendo então de caminhar de volta às suas casas descalços sobre a quente areia do deserto.
Pois bem, com exceção desta quarta estrofe, que é muita específica sobre a guerra de 1967, todas as outras caberiam perfeitamente hoje no contexto do conflito israelense-palestino. Como escrevi acima, não vivi aquela época e não sei dizer se o poema era adequado (talvez alguém que viveu, possa dizê-lo). Mas vivo a época de agora, e infelizmente Fried descreve perfeitamente grande parte dos judeus de hoje (sejam de Israel ou da diáspora), quando afirma que “agora vocês são como eles (os agressores)” e quando lhes pergunta se “a crueldade deles (agressores) permanece viva agora em vocês (judeus)”.
Termino esta breve reflexão lembrando o(a) leitor(a) – seja ele(a) judeu/judia ou não –, que somente parte do povo judeu apoia a opressão israelense aos palestinos. Outra parte luta dia e noite contra ela e espera que ‘Shema Israel’ (‘Ouça, Israel’) possa um dia ser somente um clamor por Deus e não um grito angustiado de um poeta diante do terror causado por parte do seu povo.
Grande Fried, onde quer que sua alma esteja agora, minha resposta à sua pergunta “Como posso continuar a ser (parte do povo) quando vocês se tornam perseguidores?” é: Você pode sempre pôde e pode continuar sendo um de nós. É um dos que nos orgulham e não um dos que nos envergonham. Sua poesia permanece viva e sendo arma de resistência para ser recitada por nós nas batalhas de hoje. Obrigado, poeta companheiro. Es lebe der Widerstand! (Viva a Resistência!)