É dolorosa essa experiência de viver a morte que deveria ser exceção virar uma pavorosa rotina (Roberto Da Matta)
Parecia um sábado como qualquer outro. Ela foi assistir a aula de teatro da neta, que adorava um palco. Quando terminou, me puxou de lado, com expressão tensa. Justo ela, que sempre vestiu máscara de durona, de engavetadora das notícias tristes. Fiquei preocupado, e não era para menos. Disse-me que estava fazendo uns exames, podia ser coisa séria, era bom estar preparado. Ora bolas, eu conhecia aquela mímica, aqueles movimentos faciais, e eles gritavam por socorro. Grito sufocado, que ela não estava acostumada a dar. Desde criança, num carnaval antigo, quando se perdeu no meio de um bloco e foi parar na delegacia, aprendeu a engolir o sofrimento. Seu pai a buscou com o delegado, já preparando a surra de cinto, que não tardou. Pedir socorro pra quê e pra quem ? Estar feliz era pecado. Viver era pecado.
Os exames confirmaram a suspeita inicial. Tumor, com possível metástase. A notícia era duplamente terrível. Trabalhara durante anos no Instituto Nacional do Câncer como assistente social. Encaminhava doentes para tratamento, vivência diária da angústia numa época em que o diagnóstico de câncer era uma sentença de morte. Contava que via médicos e enfermeiros circulando pelo hospital, levando órgãos dos mortos para pesquisa. Conhecia a Morte com intimidade. Agora percorreria aqueles corredores em busca de uma improvável cura. Não havia máscara que pudesse esconder o horror.
Ainda na fase inicial, acompanhei-a para receber o resultado de um exame. Quando o médico se aproximou, ela desabou. O monumento de segurança, que desafiou o machismo agudo de meu pai e de seu tempo, implorou ao doutor que lhe desse esperança. Não foi possível, as imagens eram implacáveis.
Vieram cirurgia, radioterapia, alguns medicamentos “alternativos”. Montamos uma estrutura para tratamento em casa, conforto que nos permitiu uma despedida gradual, pacífica. Nunca é fácil acompanhar uma vida que se extingue, embora, racionalmente, saibamos que ao nascer já começamos a desaparecer. A sanidade só é possível quando sublimamos a finitude e a arquivamos numa gaveta distante. Pendurada em cuidados paliativos, não restava muito tempo à minha mãe. Não conseguíamos conversar, seus olhos tinham se transformado em bolas de gude opacas. Junto com minha irmã, nos revezamos numa vigília dolorosa, mas resignada. Assistimos pela televisão a apresentação dos Rolling Stones, no Maracanã, esquecendo por breves momentos o espectro da Indesejada das Gentes.
A expectativa do inevitável nos colocou em contato com duas admiráveis profissionais da saúde. A médica, que vinha diariamente acompanhar a situação, mostrou enorme sensibilidade. Falou-nos, sem rodeios mas com delicadeza e compaixão, sobre o fim próximo, preparando-nos para isso. Sabíamos que dona Lilia, como a conhecemos, não existia mais. Não demorou muito. A enfermeira, afetuosa, incansável durante os plantões, foi companheira preciosa na jornada derradeira de uma mulher que, sem idealizações, prisioneira de infortúnios e felicidades como todos nós, aprendi a respeitar. Sem ressentimentos.
Foi nessas duas profissionais que pensei ao ver a foto de uma médica intensivista na capa d’O Globo. Rosto ferido pelo uso permanente da máscara, ela é um dos muitos trabalhadores da saúde que estão na linha de frente da luta contra o coronavírus. Submetidos a jornadas extenuantes de trabalho, muitas vezes sem condições adequadas, vivem uma rotina que combina medo e exaustão física e emocional. Em entrevista à Folha, o doutor Elias Knobel, criador da UTI do Hospital Israelita Albert Einstein, afirmou que “o Brasil nunca se preparou para uma assistência básica no mínimo decente”. Com sua longa experiência na área intensiva, Knobel observou que “quem trabalha na UTI nunca esquece. É muito difícil. Você vê tudo que pode imaginar (…) Isso causa microtraumas”.
Ao voltar de uma visita à avó doente, minha filha, aquela da aula de teatro, abaixou a cabeça e chorou baixinho. Tentei consolá-la. Enxugou as lágrimas e disse: “Vou escolher uma profissão para diminuir o sofrimento das pessoas”. Hoje, é fisioterapeuta e osteopata. Trata, como deve ser, corpo e alma. Com o pensamento e o sentimento voltados para ela, homenageio todos os profissionais da saúde que ajudam, na carne viva de uma pandemia, a socorrer quem precisa. Enfrentam a doença e os cretinos, genocidas, obscurantistas, que tentam transformar nosso país numa fantasia hedionda e caricata.