Um homem é feito de medos e da sua capacidade de enfrentá-los (Joaquim Ferreira dos Santos)

Não sei vocês, mas sempre que esbarro em pepinos e abacaxis sou tentado a abrir a cortina do passado e tirar de lá um conforto e, com sorte, um caminho. Sei bem que é um ledo e ivo engano. Aquela história de “naquele tempo não tinha disso não” só serve como manual do almanaque Capivarol. Nos anos dourados, o que serão eles ?, não tinha coronavírus, mas … Meio ambiente era coisa de esotéricos, arquitetura rimava com frescura (e foram destruídos prédios cuja beleza só conhecemos de fotos), direitos de negros, mulheres, homossexuais, eram fábula de utópicos incuráveis, crianças não tinham vacinas para doenças que deformam ou matam, anticoncepção era privilégio de machos. É sempre assim quando se conversa com os mortos. Filtram-se as impurezas e sobra o manto diáfano da ilusão.

O Menino viveu uma fase de racionamento de energia, blecaute diário, lá pelo início dos anos 60. Justificava a paródia musical “Rio, cidade que me seduz/De dia, falta água/De noite, falta luz”. Eram cerca de trinta minutos, que começavam na hora da Ave Maria, voz assustadora do Júlio Louzada. A molecada parava os deveres escolares e, ao ar livre, aproveitava a luminosidade precária das estrelas para respirar a fuga da rotina. Para os adultos, um transtorno que se traduzia em velas e lampiões acesos. Quando a luz voltava, a realidade cobrava o preço. Hora da sopa de abóbora antes do prato quente. Trauma que até hoje não superei. A luminosidade pode ser penumbra.

O apagão de agora, na lente das nossas certezas, atinge em cheio um padrão neurológico que nos traz conforto. Foi a bióloga e neurocientista Suzana Herculano-Houzel quem disse: “(…) A importância de se sentir no controle da própria vida para manter as respostas de estresse do cérebro em xeque. Para o cérebro, tudo vai bem enquanto estamos no controle dos acontecimentos, a começar por nossas próprias ações. Controle é poder, e perder o controle só traz consequências nefastas: sensação de impotência, ansiedade, angústia, agitação, ou inação aprendida, prima da depressão”. O que estamos passando aniquila o território de qualquer “empoderado”, nos aproximando, na visão do filósofo Slavoj Zizek, de uma crise de saúde mental, cujas sequelas estamos muito longe de imaginar. Só em New York, cerca de 6.000 voluntários se apresentaram para ajudar a amenizar o sofrimento mental de gente que perdeu todas as referências estruturantes da rotina. Quando Guga Chacra chorou ao vivo na televisão, criou a imagem perfeita do desamparo que nos assombra. Está faltando o ombro paterno/materno para enxugar as lágrimas.

Dia desses – coincidência ? – revi o clássico Moby Dick, filmado em 1956 e estrelado pelo Gregory Peck (que faz um Ahab exageradamente teatral). Os efeitos especiais chegam a ser cômicos (a baleia branca de borracha só podia assustar quem tinha calça curta nos anos 50; quando o Pequod afunda, o faz num redemoinho, que sugere uma banheira cheia d’água da qual se tirou a rolha), mas a mensagem está lá, intocada. Quando a gente corre atrás dos nossos monstros, obsessivamente e com faca nos dentes (no caso, arpão), pode ser engolido por eles. E, no entanto, essa caçada é muitas vezes vital para estabelecer um equilíbrio com o mundo real. É preciso encarar o fantasma para aprender a lidar com ele. Matá-lo ? Nem o capitão Ahab conseguiu.

A solidão forçada a que estamos submetidos joga uma armadilha. Como poetizou Paulo Sérgio Pinheiro, quem da solidão fez um bem, vai terminar seu refém. Abrir os olhos a cada dia é trabalhar para combater o isolamento. E isso pode ser feito no pequeno mundo, que vira universo. Manoel de Barros, sempre ele, achava que o “quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade; a gente só descobre isso depois de grande”. O tamanho das coisas, e Manoel sacou, “há de ser medido pela intimidade que temos com elas”. Na árvore que quase invade minha janela, o que serão aqueles que voam ? Juritis, inhambus, pintassilgos ? Não sei, não sou Tom Jobim. Só sei que uma família de tucanos faz um barulho danado, arredios, não vaiam minha tentativa sofrível de lhes imitar o canto. Nunca dei bola para essas vidas, que agora me parecem tão livres, tão universais …

Veríssimo comentou saber “de casais que estão se conhecendo com o convívio forçado, começando pelo básico: como é mesmo o seu nome ?”. Gozações e idiossincrasias à parte, muita gente está ouvindo a voz habitual como se fosse a primeira vez. Tudo é compartilhado, o que não é pouco numa divisão de trabalho fincada em cultura ancestral. Quando o vírus se recolher à rotina endêmica de seus parentes, voltaremos ao mundo que se despedaça ou daremos os primeiros passos em terreno inédito ? Sou cético, mas estou aberto a contestações.

Vida que segue.

Abraço

Jacques