Albert Camus descreveu na sua obra-prima La Peste: ”O mundo é cada vez mais igual, com cada qual isolado na sua bolha mas intuindo que, amanhã, nada será como antes.”
Tal como nos disse Camus, hoje cada um vive na sua bolha, isolado dentro de casa, vítima do medo do inimigo invisível; nada mais será como antes da catástrofe humano-sanitária que vivemos.
O mundo globalizado ficou “cada vez mais igual”, sob o império dos McDonalds, Coca Cola, Amazon, Google, Facebook. Um mundo sem surpresas, dirigido por algoritmos e sanduiches sem sabor. Antes de pegar o avião, o turista já sabe exatamente o que vai encontrar do outro lado do planeta, levado por uma mão virtual. Ele parte simplesmente para confirmar (para os outros) que esteve em lugares exóticos, somando cultura e beleza em selfies que desaparecem nas redes sociais.
Nesse mundo descrito por Camus, em 1947, muitas vezes esquecemos o essencial, o homem.
La Peste é o romance do nosso drama, a crônica da vida confinada dos habitantes de Oran, cidade argelina, durante uma epidemia de peste. Uma reflexão profunda e humanista sobre os comportamentos adotados por uma sociedade quando suas liberdades fundamentais são restringidas.
Como após a ascensão do nazismo e durante a ocupação, encontramos na Peste os resistentes – aqueles que lutam e colocam suas vidas em perigo para salvar os outros; os negacionistas, que se recusam a ver e minimizam a propagação do mal; os oportunistas, que aproveitam para enriquecer ou galgar poder.
Quando enfim a doença regride, os habitantes de Oran, libertados, juram não esquecer nunca as provações passadas, confrontados aos absurdos da existência e à precariedade da condição humana.
Ao longo do romance, Camus questiona: o homem é mais humano quando se dedica a salvar a sua espécie ou quando pensa, antes de tudo, em si mesmo e nos seus? um acontecimento como a peste nos engrandece ou nos expõe ao pior de nós mesmos?
Camus não responde, limita-se a lembrar que “somos humanos pelo simples fato de reagir, de esperar, de amar ou sofrer.”
“Chacun la porte en soi, la peste, parce que personne, non, personne au monde n’en est indemne… »
Cada um traz a peste em si, porque ninguém, não, ninguém no mundo está a salvo …
Se o coronavírus não tiver afetado a nossa capacidade de raciocinar, de sentir, de compreender a realidade, alguns erros cometidos poderão ser corrigidos e teremos a chance de construir um mundo diferente. Talvez a gente continue não sabendo como combater o mal, mas pelo menos não faltarão máscaras, nem luvas, nem respiradores para os resistentes, nem leitos para os doentes, nem dignidade, nem um gesto solidário. O homem e não o lucro estará então no centro da vida, reconhecido o direito inalienável à saúde. Não mais se sofrerá com a ganância de uns, com a idiotice negacionista de outros. Seja ele preto, branco, crente ou ateu, rico ou pobre, simplesmente humano.
Vai depender de nós, uma vez libertados da Peste.