Semiconfinado por conta da guerra viral, olho em volta e vejo outras tropas se movimentarem. Estas, com efeitos mais permanentes, embora não menos danosos, do que os do microorganismo coroado. Suas armas são a indisposição ao diálogo, o sectarismo de base identitária e a miséria da política. Uma frente de batalha se abriu com a produção de uma série televisiva e um documentário sobre Marielle Franco.
Antonia Pellegrino, mulher do deputado Marcelo Freixo, resolveu fazer uma série que retratasse a vida e o assassinato da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018. Convidou o diretor José Padilha para o projeto. Choveu bomba. Para começo de conversa, alegaram segmentos do movimento negro, eram dois brancos, incapazes, pela cor, de entender o universo de uma mulher negra. Depois, como ousavam incluir José Padilha, um “fascista” (as aspas explico mais adiante), para dirigir os episódios ? Ato contínuo, pelo menos 60 pensadores e profissionais negros divulgaram carta de repúdio à escolha de Padilha, acusado de “produzir ferramentas simbólicas para a construção do fascismo e genocídio da juventude negra no país”.
Padilha, privado de uma interlocução franca e pública, respondeu aos ataques num artigo publicado na Folha de São Paulo.
Rebateu a acusação de fascismo (centrada na direção dos dois Tropa de elite) e denunciou o linchamento a que foi submetido. Acho uma tolice interpretar a saga do capitão Nascimento como apologia da violência. Não me estenderei, mas basta lembrar a evolução do personagem interpretado pelo Wagner Moura, que vai do policial do BOPE que comanda ações violentas ao cidadão que denuncia as mazelas do sistema policial e seus tentáculos políticos. É uma obra de ficção, baseada em extensa pesquisa realizada com ajuda do deputado Freixo. Uma história bem contada sobre a ascensão das milícias no Rio de Janeiro. A meu ver, é clara denúncia daquilo que descreve. O fascismo não está no filme, mas nos que aplaudiram as execuções sumárias, as torturas e a filosofia do “primeiro” capitão Nascimento. Fosse diferente, um filme como A batalha de Argel, do cineasta Gillo Pontecorvo, poderia ser interpretado como exaltação da tortura colonialista (porque mostra, com realismo incômodo, as barbaridades que os franceses cometeram na Argélia). Exibir não é coonestar.
Ah, mas ele também produziu O mecanismo, série exibida na Netflix, que elogia a operação Lava Jato e seu protagonista Sérgio Moro. Não assisti, não tenho como avaliar. No entanto, mesmo que sua abordagem tenha sido equivocada, Padilha fez uma autocrítica pública através de outro artigo na Folha. “Quero reconhecer o erro que cometi”, admitiu. Quantos companheiros progressistas tiveram coragem igual, o reconhecimento, sem tergiversações, de um erro ? Por outro lado, admitamos que a acusação de fascista se dê pelo fato de Moro participar do governo Bolsonaro. Ora, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector foram fascistas por terem participado do governo Vargas, no Estado Novo ? Vinícius de Moraes e d. Helder Câmara na mesma moeda, por terem flertado com o integralismo ? Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde, que tem se comportado corretamente nesta crise do coronavírus, é fascista? Me parece que a vulgarização do termo corrompe seu significado.
Sobre o “crime” de brancos contarem a história de uma mulher negra, a gente cai na histeria de setores do movimento negro. Quando quiseram homenagear dona Ivone Lara com um musical, convidaram a cantora Fabiana Cozza para interpretá-la. Pra que, zabelê ? Foi criticada por não ser “suficientemente negra” para o papel e renunciou. Como se uma obra de arte dependesse de melanina. Em outro momento, um professor de história chegou a dizer, citando Malcolm X, que não existe possibilidade de um branco aderir “até as últimas consequências” à luta contra o racismo. Além de ser uma estupidez política, agride a verdade. Joe Slovo, branco de origem lituana, foi um dos mais aguerridos militantes contra o regime obsceno do apartheid. Amigo de Nelson Mandela, foi preso por suas convicções antirracistas. A luta contra o racismo não será exclusiva dos negros, da mesma forma como não se deve combater o antissemitismo apenas com os judeus.
José Padilha não é de esquerda. Isso, no entanto, não é um crime de lesa-pátria. Está a anos-luz do arraial bolsoneiro, tem uma obra respeitável e não foge da controvérsia. Empurrá-lo, levianamente, para a extrema-direita, linchando-o ao invés de dialogar com ele, é um erro grave. Erro de uma esquerda um tanto catatônica, andando em círculos, incapaz de se articular para o enfrentamento do fascismo real. O fascismo que se escondia por trás dos ataques a um paraninfo do curso de jornalismo da Unisinos. Por criticar os recentes ataques de Jair Messias à imprensa e jornalistas, teve que sair escoltado para não ser agredido pelo público. Alergia à divergência, esse o verdadeiro inimigo.
Cometeu erros ? Evidente que sim. Mas, se você sobe nas tamancas quando o erro é flagrado, sugiro a leitura do Poema em linha reta, do Fernando Pessoa. Primor de ironia, Pessoa se dirige aos perfeitos, “ó príncipes, meus irmãos”, “toda gente que eu conheço e que fala comigo, nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um enxovalho; nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida …”. E pontua: “Quem me dera ouvir de alguém a voz humana”. A leitura completa é antídoto para as tentações definitivas, tão confortáveis, mas tão nefastas.
Abraço
Jacques