Bordando a Realidade

Tenho lido muitos artigos de opinião. Todos bons e com um tom de denúncia, convocação para o pensamento crítico e qualquer coisa de metáforas. Todos opinando e mostrando possibilidades para mudarmos o discurso com o que está a se espalhar pelo Brasil: o bosonarismo e suas moléculas, que em sua estupidez tem tentado varrer a Constituição Federal do cotidiano brasileiro.

Hoje, conceituados ou não, jornalistas, blogueiros, faceboockeanos e demais entidades ligadas à escrita se posicionam em suas bolhas, arquétipos de segurança e respostas ao que foi dito com inteligência, sarcasmo, aforismo etc. e tal. Eu sou um desses partícipes no faceboock.

Mauro convidou-me por duas vezes para colaborar no seu Blog tão necessário nesse tempo que de bicudo já não é mais, pois extrapolou o mínimo de civilidade. Estamos em tempos perversos: antissemitismo, xenofobia como regra, preconceitos em todas as sequências, institucionalização dos horrores: a morte tem cor e etnia. A cor é do negro, do índio, de quem está à deriva, à margem do lema presidencial: DEUS, PÁTRIA, FAMILIA. Um Estado teocratizado. Sabemos que hoje a Democracia é a boneca sem braços e pernas da criança abandonada.

O que de novo há no front desse DESgoverno? Absolutamente nada! Nenhuma via é observada a favor do coletivo, do povo. Somos atropelados diuturnamente por atitudes distópicas do presidente ao soldado raso. O que fazer?

Dia 8 de março, um dia emblemático e historicamente cheio de significados, aqui, no Brasil, relacionamos ao incêndio ocorrido em Nova York no dia 25 de março de 1911 na Triangle Shiirtwaist Company, quando 146 trabalhadores morreram, sendo 125 mulheres e 21 homens [na maioria, judeus], que trouxe à tona as más condições enfrentadas por mulheres na Revolução Industrial, iremos às ruas pelejar. Não sei o que nos espera, mesmo com a proposta dialógica de nossas manifestações. Só sei que queremos um país vestido de dignidade para os seus cidadãos e cidadãs sem medo dos becos escuros e livremente andando de mãos dadas sem a abordagem inescrupulosa e arrogante de quem se veste de servidor público, ornado de uma farda com a truculência como diálogo.

Não estou pedindo o Brasil de volta, pois descobri que havia nessa linda colcha de retalhos muitos armários do fascismo e neonazismo. Quero sim, um país civilizado respeitando a carta da Constituição. Quero sim, um país que sabe votar com letramento e não em currais de opressão seja por quem for, não importa de onde emana esses podres poderes de anular a liberdade de quem quer que seja. O voto é a maior carta de alforria de um povo.

Bordo de realismo esse inapto governo, pois sua biografia era aberta aos 57, 5 milhões de eleitores, nos 28 anos como parlamentar. Todos conheciam o seu discurso acéfalo e cruel. Todos!  Erraram por ódio, por se sentirem no direito, através do voto, jogaram no obscurantismo toda a Nação. O que reverbera é o estúpido mantra: “TIRAMOS O PT!” Isso falando em eleitores… E os representantes políticos, que egoicamente foram abandonando o round, e, cá deixaram o “destino” da Nação em nossas fragmentadas mãos. Lutamos não exatamente pelo PT, mas pelas asas da liberdade, que sabíamos estar por um fio e a barbárie seria instalada sem piedade.

O dialogismo tem que haver em mares revoltos, essa é a grande lição de 2018. Espero que reflitam com o rigor da maturidade política este ano e para 2022. Caso contrário, a amada Pátria será um jazigo sem epitáfio legada aos vermes. O NÓ do bordado está dado. Obrigada!

 

Gigi Pedroza

 

Montevideanas

al sur al sur/está quieta esperando/Montevideo (Mario Benedetti)

Lá tantas vezes que não me sinto turista. A Montevidéu que encontrei desta vez se chama memória.

Numa rua típica, baldosa persistente, argamassa quieta, estava a Fundação Mario Benedetti. Do lado de fora, como em tantas outras casas montevideanas, não se suspeita os tesouros que esconde. O grande intelectual, que não teve filhos, nem deixou herdeiros, deixou ordens claras do que fazer com seu imenso legado. Um conselho de curadores, todos voluntários, respeitam a vontade do Mario, preservando sua imensa biblioteca, as obras de arte que ganhou, seus móveis mais significativos. No fundo, um pátio cálido, que convida ao silêncio. Este é o ano de seu centenário de nascimento. As comemorações já começaram e têm a cara do uruguaio universal, identificado com a cidade e suas gentes. Muitas atividades ao ar livre, em forma de diálogo e acolhimento. Polindo, em suma, a memória de um tempo fora do tempo.

No centro da cidade, uma taberna vasca. Preferia uma flamenga, mas resolvemos arriscar. Mais uma vez, uma casa-surpresa. Do lado de fora, apenas a fachada meio ferida pelo tempo. Sobe-se a escada, e … voilà ! Corrimões de madeira centenários, uma porta com vitral colorido que dava acesso ao ginásio de pelota vasca. E tinha gente praticando. Na taberna, boa comida e pessoas conversando sem celular (gente estranha aquela, sem pescoço torto e de olho atento). A construção celebra a imigração do País Basco. Memória viajante.

Afastado do centro, está o Museu da Memória. Criado para lembrar o período ditatorial (1973-1985), que, como no Brasil e em outros países da América Latina, institucionalizou o terrorismo de Estado, fica num casarão que pertenceu a um general. No século XIX, era sua casa de veraneio e, conta-se, lá os adversários eram servidos aos leões que mantinha enjaulados. É um lugar impressionante (embora um tanto maltratado por falta de manutenção e de informações mais detalhadas sobre o acervo impactante). Quem assistiu o filme Uma noite de 12 anos, que reconstitui a situação dos chamados reféns da ditadura uruguaia (entre eles, Pepe Mujica), não tem como ficar indiferente. Lá estão os uniformes reais dos presos políticos (dá calafrios a semelhança com os de campos de concentração), portas das celas, objetos produzidos pelos prisioneiros, fotos dos que foram assassinados e os corpos desapareceram. O objetivo do museu não é clamar por vingança, mas, tal como fazem os judeus com o Holocausto e os japoneses com a barbárie nuclear em Hiroshima e Nagasaki, lembrar para que não volte a acontecer. Memória de dor e de luta.

Não pude evitar um certo desconforto com dois aspectos. O museu fica muito afastado da região central. Talvez por isso, tenha poucos visitantes. Éramos os únicos quando lá fomos. Seria essa uma evidência de desapreço pela história recente do país ? Foi quando lembrei das Marchas del Silencio, que acontecem todos os anos no mês de maio. São grandes manifestações de massa, que reivindicam a localização dos que, sob a custódia do Estado, desapareceram durante a ditadura. Esquecimento ou permanência ? Em qual ponta estaria a verdade ?

Foi quando me deparei com a fotografia de um desaparecido, em exposição numa estrutura em forma de viveiro. Próxima do chão, ela estava quase encoberta por um galho de árvore. Percebi que havia duas formas de apreciá-la. A primeira, projetando o crescimento das folhas do galho. Fatalmente cobrirão a foto, fazendo desaparecer pela segunda vez, simbolicamente, o fotografado. A segunda seria enxergar as folhas como uma proteção da imagem, perpetuando-a.

Qual das visões prevalecerá ? A resposta está no povo uruguaio. Memória em construção.