Já não tenho mais nenhuma dúvida de que o segundo maior erro da Constituição de 1988 (o primeiro foi instituir um regime presidencialista, mas regulamentá-lo como parlamentarista) foi o empoderamento do Ministério Público.

Trata-se, em princípio, de medida correta e democrática. Os constituintes, então, adotaram-na imbuídos das melhores intenções.

Só não previram o quanto a sociedade brasileira, em seu atual estágio de desenvolvimento, e com suas características centenárias, estava totalmente despreparada para isso.

Como todas as instituições importantes do país nesta quadra histórica, o MP é totalmente inacessível às camadas populares, que são as que dele mais necessitam.

E, na mão de nossa classe média ressentida, recalcada e atrasada, terminou por se tornar mais uma corporação a serviço da estrutura opressiva reacionária que sempre deu as cartas no Brasil.

Hoje, não surpreende a ninguém com um mínimo de discernimento o fato de ser ele um dos principais pilares de criação e sustentação do esquema que nos conduziu a um golpe, o qual pariu um regime miliciano de extrema direita.

De guardião da legalidade, o Ministério Público passou a promotor e avalista das mais escandalosas ilegalidades.

A imaturidade da sociedade brasileira diante de um avanço civilizatório tão significativo gerou uma instituição perversamente distorcida pela explosiva mistura de vaidades despropositadas e exacerbadas, arrogância petulante, punitivismo primário e sobretudo inócuo, corporativismo patológico, e arraigadíssimos preconceitos de classe.

Ao contrário de consolidar nossa democracia, o MP a freia naquilo que lhe confere o sentido mais amplo e profundo.

O andar da carruagem revelou que as pessoas – com inúmeras e fantásticas exceções, que nem por isso deixam de ser exceções – não estavam emocionalmente preparadas para tanto poder.

Ele não lhes bastou. Subiu-lhes à cabeça.

Passaram a buscar protagonismo em todas as searas que pudessem alcançar. Criaram a máxima de que ninguém está acima da lei. Exceto eles próprios.

Defensores constitucionais da legislação, não hesitam em flexibilizá-la escandalosamente, quando para dela se beneficiarem. O rigor é só para os outros.

Não vou ficar aqui apontando a fogueira de vaidades, já de todos bem conhecida.

Tampouco vou esmiuçar o papel vergonhoso do Ministério Público na construção do cenário desolador que hoje coloca o Brasil entre os párias do mundo. Há inúmeros analistas sérios que já o fizeram.

Vou me ater ao título, e abordar outras situações, que compõem e complementam o quadro à perfeição mas, a meu ver, têm recebido menos atenção.

O MP é responsável, hoje, por pelo menos dois remendos institucionais escabrosos, capazes, por si sós, de atrasar nosso processo civilizatório em anos, talvez décadas. Isto porque institucionalizam o combate aos efeitos, em detrimento das causas, de seríssimos problemas que afligem nosso País. E, pior, o fazem em afronta direta à própria Constituição, cuja defesa deveria ser seu dever primário.

Os remendos são filhos diletos dos já referidos punitivismo, corporativismo, preconceito e viés ideológico protofascista.

O primeiro deles é terem liderado uma luta, afinal vitoriosa, contra a PEC 37, que explicitava sua incompetência para investigar crimes.

A PEC, a rigor, era desnecessária, porque a Constituição é bem clara a respeito da exclusividade investigatória da Polícia Civil.

A posição do MP, contrária à Carta Magna, mas ainda assim hoje consagrada no Brasil graças à luta dele, em causa própria, é aberração visível a olho nu para qualquer observador minimamente inteligente e imparcial.

Importante lembrar que à época da discussão da PEC o principal argumento de nossos “bravos” procuradores era o de que a Polícia Civil não dispunha de condições para dar conta da missão satisfatoriamente.

Então, ao invés de reconhecerem esta situação como causadora da deficiência crônica das investigações criminais, liderarem um esforço para revertê-la, e criar uma discussão séria a respeito da questão policial no País – e os céus sabem o quanto precisamos disso! –, o que fazem Suas Excelências? Remendam-na, em benefício próprio. Utilizam todo o poder que a Constituição ingenuamente lhes outorgou para enganar a população, e mobilizá-la no sentido de levar sua instituição ao proscênio. Isso também ao argumento – implícito, mas nem por isso menos cafajeste – de que ela sabe melhor. Só eles são bons. O resto é o resto.

O resultado? Quem investiga é o mesmo que acusa, o responsável pelo controle externo da polícia faz o trabalho da própria polícia, y otras cositas más. Uma barafunda.

O segundo remendo também foi vitorioso em certo momento. Hoje, felizmente, o Supremo Tribunal Federal restaurou a sanidade. Resta saber até quando.

É inadmissível a atitude do MP de pressionar – outra vez – para que se institucionalize a inconstitucional – outra vez – prisão do réu antes do trânsito em julgado de sentença condenatória.

O argumento de que a obediência ao texto constitucional vai causar impunidade, e que centenas de criminosos serão libertados outra coisa não é – outra vez – do que um remendo. Dos mais tristes e perigosos.

Afinal, por que, diabos, há tantos presos cujos recursos não são julgados?

Ao invés – outra vez – de trabalharem para diagnosticar e reverter as causas da morosidade da justiça, da linha de produção de criminosos em que se transformou a sociedade dos despossuídos, e da consequente superpopulação carcerária (entre as quais a brutal injustiça social que nos assola), o que fazem Suas Excelências? Buscam – outra vez – alçar-se ao protagonismo descabido, desta vez para satisfazer sua sanha vingativa. A qual, por isso mesmo, perde o sentido mais amplo que deveria ser inerente à função acusatória, de saneamento do tecido social.

Não é por acaso, absolutamente, que a quase totalidade dos promotores e procuradores provenha de famílias brancas e abastadas. Tampouco é por acaso que a esmagadora maioria das pessoas que eles não querem ver na rua seja composta de pretos e pobres.

Eles sabem disso, mas fingem, apenas fingem, que não. Sabem que do contrário não poderiam explicar sua inércia, que é fundamental para manter o bem-bom, garantir que os excluídos não o ameacem e, de quebra, ainda conseguir uma boa e farta exposição na mídia. Porque, afinal, ninguém é de ferro!

O problema do remendo é que termina por sempre desrespeitar o contexto original.

E quando – outra vez – o galo cantar, sequer haverá brioches.

 

  • Agradeço a leitura crítica e contributiva de Tânia Maria Baibich.