Eu me perdoo
Nesta terça-feira, dia 8 de outubro, começa o Dia do Perdão, a data mais importante do calendário judaico. Dez dias depois da entrada no ano de 5780 e de acordo com a tradição, um jejum de 24 horas deve ser observado. Na quarta-feira, um jantar em família encerra a festividade e o ano novo de fato tem início.
Para a maioria dos judeus, este é um dia especial, um dia de expiação de preces e arrependimento. Pede-se perdão pelos malfeitos do ano para que sejamos perdoados por Deus e inscritos no Livro da Vida. Fácil de entender porque o pai da psicanálise, Sigmund Schlomo Freud, foi um judeu.
Como um judeu laico, tenho uma visão diferente. Nunca concordei com a ideia de que para uma pessoa se arrepender de alguma coisa, ela deva deixar de comer pelo tempo que for. Nenhuma religião deveria impor penitências, mas cada uma das religiões monoteístas encontrou uma forma de nos auto infligir algum tipo de desconforto como forma de obtermos o perdão de Deus.
Eu vejo o Dia do Perdão como o dia de perdoarmos a nós mesmos sem a necessidade de castigos. Como humanos que somos, por mais que tentemos fazer o bem a todos, é possível que mesmo não intencional, tenhamos causado mal a um amigo ou conhecido e até a alguém que desconhecemos. Se este for o caso, podemos pensar em uma maneira de corrigir o mal feito, e o mais importante, não o repetir.
Precisamos nos perdoar também por nossa limitação. Por mais que tenha sido o nosso desejo, não foi possível alcançar todos os nossos objetivos. Temos de considerar nossas boas intenções, nossa vontade de lutar por um mundo melhor, nossa sede por justiça. Tarefas que tentamos cumprir.
No Dia do Perdão revigoro os motivos da minha existência neste mundo. Já tenho um passado do qual me orgulhar. Se me fosse dado a oportunidade de voltar ao início da vida, pouca coisa seria alterada nas minhas escolhas. O que este ano trouxe de novidade é que provavelmente teria escolhido melhor algumas de minhas antigas amizades e, com certeza, convivido menos com alguns parentes.
O ano que passou foi muito difícil. Foi de escolhas complexas. Tive de abandonar inúmeras amizades de uma vida, de parentes próximos. Foi um processo justificado, mas que deixou cicatrizes. Ninguém passa por algo assim incólume. Algumas feridas permanecem abertas.
No entanto, em meio as perdas tive a agradável surpresa de conhecer muita gente boa que compartilha meus ideais, minha visão de mundo e de justiça. Novos amigos que não fora o momento que passei em meio à turbulência política do Brasil, talvez não tivesse tido a felicidade de cruzar com eles.
Como este dia se repete a cada ano, ele nos proporciona um olhar para o ano que passou. Esta limitação é importante pois nos permite contextualizar um espaço de tempo limitado. Um ano é muito tempo para uma criança de dois anos de idade que dobrou sua existência. Já não representa tanto para quem, como eu, está chegando aos 62. Ainda assim, é tempo suficiente para nos levar a uma retrospectiva e pensar o que poderia ter feito diferente. Se aquela escolha decidida naquele dia específico, foi a correta, ou se poderia ter sido outra para melhor.
Eu não uso o Dia do Perdão para pedir perdão aos outros. Neste dia peço perdão a mim mesmo por não ter sido melhor, ajudado mais ao próximo, mais compreensivo com a dor dos outros, mas eficiente na luta por uma sociedade mais justa, mais amoroso com a família e amigos, mais acolhedor com as angústias de tantos e não ter sido capaz de perceber meus próprios enganos.
Neste dia também reservamos um momento para lembrar os que partiram. Eu acredito que uma pessoa em especial precisa continuar sendo lembrada, Marielle. Este ano também a menina Agatha em nome de todas as crianças mortas por balas perdidas. Enquanto não for feito justiça com a prisão e a condenação de todos os envolvidos nestas mortes, eu preciso recordar.
Não poderia passar por um dia destes sem fazer menção ao Presidente Lula. Nenhum ser humano pode ter sua liberdade tolhida por aqueles que deveriam ser a garantia do estado de direito. Lula representa todos aqueles com quem a justiça falhou e sua obstinação pela verdade é uma inspiração. Gostaria de ter podido fazer mais em prol de sua liberdade.
Dizem que somos moldados por nossas escolhas. Eu acredito nisso. Acho também que o nosso livre arbítrio nos permite voltar atrás quando a escolha foi malfeita e reparar o erro. Também é o que nos mantem altivos com relação as boas opções. Eu escolhi estar de um lado da história e vivo por esta escolha. Longe de um ser perfeito, compreendo meus erros, faço o possível para reparar os equívocos.
Não acredito em perdoar os que fizeram mal a mim, aos próximos ou a sociedade em geral. Em alguns casos posso relevar. Não perdoo aqueles que transformaram o Brasil no que estamos vivendo. Um país nas mãos de uma milícia apoiada por uma ordem neopentecostal. Um poder que envergonha os brasileiros pelo mundo, que destrói a sociedade, que explora os trabalhadores e nos faz retroceder a Idade Média.
Quero sim prometer, que neste ano de 5780 do calendário judaico, vou permanecer junto a todos que continuam na trincheira da resistência democrática lutando por um outro Brasil.
Por fim, é meu desejo que todos nós do campo progressista de esquerda sejamos inscritos no Livro da Vida preenchendo todas as suas páginas!