O CASO CASTAN
 
Luiz Nazario
Professor Doutor da Escola de Belas Artes
Universidade Federal de Minas Gerais
 
 
O nosso dever é o de afirmar que não existem raças, mas seres humanos; que o ódio racial é um dos mais terríveis flagelos da humanidade; que a expressão mais violenta do ódio racial foi o estado hitlerista; que a aparição de uma suástica é uma sombra da morte. Cabe aos homens de boa-vontade cancelá-la, num pacto de solidariedade.
 
Norberto Bobbio,
citado por Celso Lafer.
Desde os anos 1980, o cidadão de origem alemã, radicado em Porto Alegre (Rio Grande do Sul), Siegfried Ellwanger Castan (conhecido pelo pseudônimo S. E. Castan), sócio-diretor da Editora Revisão, vem editando, vendendo e distribuindo em escala nacional e internacional livros anti-semitas, nazistas e negadores do Holocausto. Do catálogo da editora constam 1 romance policial, 2 livros infantis, 1 livro de poesia gaúcha e 23 obras revisionistas. Entre os autores, o “historiador” Sérgio Oliveira, um militar de Pelotas; e Ivo Beuter, médico de Palmitos (SC). Entre os títulos anti-semitas, nazistas e negadores do Holocausto, Os Protocolos dos Sábios do Sião, apresentado e comentado por Gustavo Barroso; Brasil, colônia de banqueiros e História secreta do Brasil, onde o mesmo Barroso vê na presença judaica a causa de todos os males do país; Os conquistadores do mundo – Os verdadeiros criminosos de guerra, um “clássico” da literatura anti-semita francesa; O judeu internacional, onde o industrial Henry Ford culpa os judeus da degeneração da cultura americana; Hitler: Culpado ou Inocente, cujo título já responde; Acabou o gás, de um construtor de fornos crematórios que nega a função de extermínio das câmaras de gás em Auschwitz; S.O.S. para a Alemanha e Holocausto – Judeu ou alemão? Nos bastidores da mentira do século, ambos do próprio Ellwanger, que acusa os judeus de desejarem “exterminar os alemães”, chamando as câmaras de gás de “fantasias”, considerando as fotografias de valas comuns repletas de cadáveres como “fotomontagens com bonecos”, “desenhos” e “truques” e qualificando os depoimentos dos sobreviventes de “mentirosos”. Ellwanger afirma que os judeus “lutam contra nós mais eficazmente que os exércitos inimigos”, lamentando que “todo Estado, há tempo, não os tenha perseguido como a peste da sociedade”. Sobre o médico e torturador nazista Joseph Mengele, afirma que ele seria uma pessoa “de elevadíssima instrução e cultura” e que “não matava nem galinha”. Carro-chefe da coleção, Holocausto: judeu ou alemão? Nos bastidores da mentira do século esgotou uma dezena de edições; traduzido para o inglês, o alemão e o espanhol, o livro tornou-se um “clássico” da subliteratura revisionista entre os militantes neonazistas.
Os primeiros a denunciar o caráter racista dessas obras foram os membros do Movimento Popular Anti-Racismo – Mopar, de Porto Alegre, integrado pelo Movimento Negro, pelo Movimento Judeu Independente e pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos de Porto Alegre, entidades às quais se associou, mais tarde, a Federação Israelita do Rio Grande do Sul – FIRGS. Atuando ao lado da Sherit Hapleitá do Brasil, presidida por Ben Abraham, sobrevivente do Holocausto, o Mopar declarou guerra sem quartel ao principal propagandista do nazismo em nosso país. O advogado Idel Aronis colocou gratuitamente à disposição de Ben Abraham a equipe de advogados de seu escritório para acompanhar o processo iniciado em agosto de 1990 contra Ellwanger.
Enquanto o processo corria na Justiça, Ellwanger fundava, em julho de 1991, ao lado de sua esposa Leonilda Evelina Scotton e do argentino Francisco de Asís Valdemoros, a L. E. Scotton & Cia, para comercializar vídeos nazistas importados de círculos racistas ativos na Alemanha e nos EUA. A empresa funcionava à Avenida João Pessoa, 397/cj. 24, em Porto Alegre. Por “prudência”, Ellwanger retirou-se da sociedade em 31 de julho de 1992, quando a L. E. Scotton encerrou suas atividades para dar lugar à Scotton International, cujo símbolo é uma fita de celulóide em forma de serpente enroscando-se na América Latina, e que continuou a comercializar os vídeos nazistas, mas com outro CGC, em nome de Valdemoros, e agora com sede à rua Cel. Vilagran Cabrita, 95/204[1]. A empresa intitulou seu catálogo, com mais de 100 títulos, de Vídeos de Cultura Histórica: filmes como O jovem hitlerista Quex (Hitlerjunge Quex, 1933), de Hans Steinhoff; Patrioten (Patriotas, 1937), de Karl Ritter; Der große König (O grande rei, 1942) e Kolberg (idem, 1945), de Veit Harlan; Wochenschauen (Noticiários) de guerra em 15 cassetes; O triunfo da vontade (Triumph des Willens, 1935) e Olympia (idem, 1938), de Leni Riefenstahl; a Coleção Privada dos Filmes de Eva Braun (1936-1943); odes a Rudolf Hess, à SS, aos Jovens Cadetes; propagandas como Ontem e hoje, de Hans Steinhoff; Vitória no Oeste (Sieg im Westen), de Herbert Wind; Líderes e caudilhos do século XX, que traz discursos de Hitler, Goebbels, Mussolini; hinos como o Balilla da juventude fascista e marchas das S.A.; ou Junkers der Waffen-SS, que documenta as academias de cadetes das SS. Anuncia o catálogo que, neste último filme, “se pode (sic) apreciar as diferentes técnicas e especialidades que desenvolvem (sic) estas escolas e as provas que os aspirantes deviam passar p[ara obter sua graduação como oficiais deste corpo de elite, de tão destacada atuação durante a Segunda Guerra” (as SS foram responsáveis, entre outras coisas, pelo extermínio dos judeus e ciganos). O catálogo elogia “a grande atuação da Legião Condor” que bombardeou a aldeia basca de Guernica em 1937, ajudando o general fascista Francisco Franco a vencer a guerra civil espanhola. Perdido nesse imaginário, O encouraçado Potenkim (Potiomnkin, 1925), de Sergei Eisenstein, também era oferecido, a preço elevado, provavelmente porque Goebbels o considerasse um modelo para o filme de propaganda nacional-socialista. Ao adquirir os produtos da Scotton, o freguês passava a receber também periodicamente um boletim “revisionista” dedicado a “pesquisas históricas” negadoras do Holocausto e dos crimes do ‘Terceiro Reich’.
Em setembro de 1993, Ellwanger foi condenado pela 27ª Vara Criminal de São Paulo às penas impostas pelo artigo 140 do Código Penal Brasileiro, por difamação e injúria. Tratava-se da primeira condenação de um neonazista na América Latina. Contudo, indiferente a essa condenação, em 1994, Ellwanger, afirmando que pesquisas de físicos e especialistas norte-americanos, franceses, alemães e poloneses teriam revelado a inexistência de câmaras de gás para prisioneiros nos campos de concentração alemães, instituiu no dia 1° de maio o Prêmio Esclarecimento, no valor de R$ 6 milhões (sic), para a primeira testemunha que provasse a morte de um único judeu em Auschwitz. Como ninguém teria se habilitado ao prêmio, Ellwanger viu nisto a “prova” da salubridade de Auschwitz. Para o revisionista, a “farsa” dos seis milhões de judeus assassinados nos campos nazistas teria duas finalidades: a) apresentar a Alemanha de Hitler como um Estado de criminosos, para justificar a “terrível destruição e mortandade civil causada pelos insanos bombardeios de suas cidades, as atrocidades cometidas pelas forças invasoras aliadas também contra a população civil, bem como os aprisionados soldados alemães mortos por fome ou maus-tratos quando a guerra já havia terminado”; e b) difamar o povo alemão para “arrancar, até hoje, dos dirigentes do que chamo de Colônia Sionista de Bonn intermináveis indenizações pessoais e também para o Estado de Israel”. Assim, mesmo com a proibição da circulação, em todo o território nacional, de livros que pusessem em dúvida a existência do Holocausto e considerassem os judeus responsáveis pelos males da humanidade, Ellwanger continuou a distribuir seus livros até em eventos internacionais e bancas de aeroporto. Durante a 8ª Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, no stand da distribuidora Irradiação Cultural, após uma queixa-crime do ex-vereador e ex-Presidente da Federação Israelita do Estado do Rio, Ronaldo Gomlevsky, a Justiça apreendeu 13 exemplares de 4 títulos da Editora Revisão. Sentindo-se ofendido, Ellwanger declarou à imprensa: “Isso aconteceu porque contestamos o Holocausto judeu e mostramos que nunca houve câmara de gás”.
Em outubro de 1995, sensibilizada pela causa do editor anti-semita, a juíza Bernardete Friedrich, da 8ª. Vara Criminal de Porto Alegre, absolveu-o com o argumento de que seus livros poderiam ser amparados pelo Direito como um “exercício constitucional de liberdade”. Não importava à juíza que tais obras entrassem em choque com a Lei n° 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor[2]. Absolvido em primeira instância, Ellwanger não escapou, contudo, de ser condenado em grau de recurso, em outubro de 1996, pela 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a dois anos de prisão, com uma pena alternativa de quatro anos com prestação de serviços à comunidade no primeiro ano e comparecimento trimestral ao juízo de execução no período subseqüente para informar e justificar suas atividades, pena essa concedida pelo fato de Ellwanger ser primário à época.
Em novembro de 1996, por ocasião da Feira do Livro em Porto Alegre, Luiz Millan e Mauro Nadworny, membros do Movimento Judaico Independente, flagraram na estante da Editora Revisão livros que haviam sido objetos da condenação de Ellwanger, além de outros novos, da mesma linha revisionista. De posse desses livros, e da nota fiscal correspondente, eles formularam uma petição ao delegado de polícia através do advogado Josias Menna de Oliveira. A esta denúncia aliaram-se Jair Krishke, do Mopar, e Luiz Francisco Barbosa, do Movimento Negro. As atas foram enviadas ao promotor Rui Paulo Nazario de Oliveira, que contou com a ajuda de Ben Abraham para a identificação dos trechos racistas nas publicações comercializadas, permitindo, assim, que o Ministério Público do Rio Grande do Sul denunciasse Ellwanger por violação da Lei n° 7.716. A denúncia foi aceita pela juíza Levis Barbosa, da 8ª Vara Civil, que designou a primeira audiência do processo, que levou o n° 01397026988.
Em 1997, Ellwanger foi condenado pelo Tribunal de Justiça – TJ do Rio Grande do Sul a dois anos de detenção e confisco de todos os exemplares dos sete livros mencionadas no processo. Mas como a FIRGS não juntara a esse processo a condenação anterior de Ellwanger, ele pode ser beneficiado com sursis (suspensão condicional da pena) como primário.
Em abril de 2000, a condenação imposta pelo tribunal gaúcho foi confirmada pelo Supremo Tribunal da Justiça – STJ, sendo Ellwanger acusado de escrever, editar e vender obras com mensagens anti-semitas de incitação ao “sentimento de ódio, desprezo e preconceito contra o povo de origem judaica”. Foi a primeira sentença definitiva por anti-semitismo na América Latina. Considerando o crime como de racismo e, portanto, imprescritível, o STJ impôs pena de dois anos de reclusão. Mesmo obrigado a lacrar sua Editora Revisão, Ellwanger manteve ativo seu sítio Holocausto: Mentira do Século, comercializando via Internet seus livros proibidos, e até expondo-os em ocasiões especiais: assim, em outubro de 2000, quando um grupo de cerca de 100 intelectuais dirigiram um abaixo-assinado a Paulo Ledur, presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro, com o objetivo de impedir que a Editora Revisão vendesse suas obras na Feira do Livro de Porto Alegre, aquele respondeu afirmando que tal editora, expulsa da entidade numa assembléia geral da Câmara, em 1989, havia garantido na Justiça, em 1992, a condição de associada da entidade, mesmo depois de declarada persona non grata pelo município de Porto Alegre, ato este que também foi revogado judicialmente[3]. Em Belo Horizonte, a propósito dessa nova polêmica, o jornal O Tempo promoveu um debate com alguns intelectuais que revelaram discreto anti-semitismo mascarado pelo sentimento de zelo pela democracia: o editor do jornal concluiu que se um “regime começa proibindo alguma coisa, acaba proibindo tudo; idéias só devem ser combatidas com outras idéias”. O jornalista e escritor André Carvalho, dizendo-se discriminado por sua condição de mulato paralítico de 1,38m de altura, disse ficar “com medo do que está ocorrendo em todo o mundo (sic) em relação à editora que, às claras, se põe contra os judeus. O que é melhor: pensar ou não pensar?”. E o editor e livreiro Greudo Catramby, contrário à proibição, concluiu: “O livro Os Protocolos dos Sábios de Sião fala… do poder do dinheiro. Os judeus, em geral, não gostam desse livro, se sentem insultados. Mas as demais pessoas devem ter a oportunidade de conhecê-lo e de fazer suas próprias análises” [4].
Em março de 2001, o STJ negou o pedido de Habeas Corpus de Ellwanger. Em razão disto, o Habeas Corpus foi impetrado ao STF. O advogado de Ellwanger, Werner Becker pretendia trocar a acusação de racismo por práticas discriminatórias. Seu cliente não poderia ser responsabilizado por racismo, mas apenas por um delito “contra os judeus, contra o Judaísmo, contra a comunidade judaica, não podendo, à luz da palavra autorizada dos antropólogos, dos rabinos e dos intelectuais judeus, ser inserido entre os decorrentes da prática de racismo”[5]; sendo os judeus um povo e não uma raça, não haveria crime de racismo (inafiançável e imprescritível, de acordo com o inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal do Brasil) na propagação do anti-semitismo da parte de Ellwanger; com isso, a pretensão executória da pena estaria prescrita. Becker citava uma declaração da Unesco sobre as diferenças raciais: “Os muçulmanos, os judeus não formam uma raça, assim como os católicos ou os protestantes…”. Becker observou ainda que a definição de judeu como raça “encontra sempre o veemente repúdio de toda a comunidade judaica, tendo sido o ditador Adolf Hitler, na obra Mein Kampf, quem pretendeu impor o caráter racial dos judeus”. Trechos da obra do antropólogo Miguel Asheri, de Israel, foram citados para reforçar a tese: “São os judeus uma raça, um grupo religioso, um grupo lingüístico, uma nacionalidade, ou o quê? Raça, não são: existem judeus louros e de olhos azuis, judeus negros, judeus morenos, judeus amarelos e de todos os tons que se possa imaginar entre estas cores. Os judeus são um povo, assim como, por exemplo, os armênios são um povo. Os irlandeses, uma mistura de muitas raças, duas línguas e duas religiões, são um povo”. Da obra do rabino Morris Kertzer, Becker destacou o trecho no qual ele afirma que “como parte de inegável importância de qualquer definição válida, deve-se dizer o que os judeus não são raça. Judeu é todo aquele que aceita a fé judaica”. Do livro A Condição Judaica, de Moacyr Scliar, pinçou outra frase: “O que quer que sejamos, nós, os judeus, não somos uma raça”. A defesa pretendia, em suma, que o crime pelo qual Ellwanger fora condenado não o seria pelo simples fato de ter ser cometido contra judeus.
O Ministério Público Federal – MPF contestou Becker; segundo o parecer de Eitel Santiago de Brito Pereira, subprocurador-geral da Republica, encaminhado ao relator do processo, ministro Gilson Dipp, o advogado confundia o significado antropológico do vocábulo racismo com seu significado jurídico. Em seu parecer, Brito Pereira contra-argumentou que a palavra racismo empregada na legislação servia para identificar quaisquer doutrinas segregacionistas. A linguagem técnico-jurídica da Constituição configurava racismo não apenas o preconceito provocado pela diferença de raça. Assim, também seria racismo qualquer discriminação ilegal em relação a grupos de pessoas, sejam ligadas por uma cultura e religião comuns, nacionalidade, origem regional semelhante ou até por outros traços emocionais ou psicológicos. Desta forma, se o réu foi condenado por crime contra a comunidade judaica, “não há como desprender o racismo do seu comportamento delituoso”. Contudo, segundo seu parecer, não seria legítimo ampliar a interpretação da norma constitucional que faz da prática de racismo um crime inafiançável e imprescritível para ter como igualmente imprescritível o delito de quem “apenas incitou a discriminação ou o preconceito contra os judeus”. O parecer foi, assim, favorável à extinção da punibilidade contra o revisionista uma vez que seu delito não acarretaria a prática de racismo. Sua condenação, segundo o representante do MPF, teria decorrido de “uma mera estimulação a um comportamento mais ofensivo, a prática do racismo”[6].
Na verdade, a todos escapou o racismo da argumentação de defesa de Ellwanger por parte de um advogado que, evidentemente, compartilha da mesma ideologia de seu cliente. A afirmação de que o anti-semitismo não é um racismo não constitui um mero sofisma, um jogo de palavras, como todos passaram a tratar a argumentação de Werner Becker, mas sim uma visão coerente com a ideologia de Hitler, para quem os judeus seriam não uma “raça inferior”, tal como ele enquadrava, por exemplo, os eslavos, ou os negros, que deveriam ser escravizados; não, os judeus seriam a “anti-raça”, que deveria ser exterminada in totum, para que ele pudesse, logo em seguida, criar o Museu da Raça Extinta. Também para Becker, poder-se-ia discriminar os judeus à vontade – até exterminá-los – sem que os perpetradores pudessem incorrer em crime de racismo. Nenhum ato cometido contra um judeu denotaria racismo, não sendo o judeu “uma raça”. Ora, racismo não significa discriminar uma raça entre outras, já que só há uma, a humana; racismo significa apartar da raça humana um indeterminado sujeito de um determinado grupo, como se aquele sujeito integrasse um grupo que formasse uma “raça” à parte. Assim, o racismo nazista consistiu em afirmar, como Ellwanger em seus livros, que os judeus são uma raça ou uma anti-raça (as definições variam ao sabor do momento), com o fim de persegui-los individualmente e in totum, independente de professarem ou não, individualmente ou in totum, a religião judaica. A resolução 623 da Assembléia Geral da ONU de 9 de dezembro de 1998, no seu item 17, considera “formas contemporâneas de racismo e discriminação racial, entre outras, contra negros, árabes e muçulmanos, xenofobia, negrofobia, anti-semitismo e intolerâncias correlatas”. A Declaração Universal dos Direitos do Homem adota o conceito amplo de racismo qualificando como discriminação racial qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferências baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou origem étnica ou traços culturais que distinguem determinado grupo humano. Na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial,  Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada pela ONU em Durban, em 2001, os termos que nomearam a conferência apareceram sempre em conjunto em todos os dispositivos da Declaração e Plano de Ação[7], igualando-se na proteção da dignidade humana. No Brasil, os judeus, como as outras minorias sujeitas a discriminação racial, têm direito à proteção contra o racismo e isto é princípio fundamental do pacto social. Como escreveu Gustavo Binenbojm, é o racismo que define raça, não o contrário.
Em reunião de 13 de abril de 2002, foi acolhido o parecer do relator Reinaldo Pereira da Silva, de Florianópolis, que classificou o anti-semitismo como racismo e o Habeas Corpus de Ellwanger, de nº 82424, foi levado a julgamento no STF, onde os casos são normalmente julgados por 3 Ministros (um relator, um revisor e um 3º Ministro) ou excepcionalmente pelo Pleno (11 juízes); como Ellwanger já tem duas condenações, se for condenado também neste processo deverá cumprir a pena num estabelecimento penitenciário, o que é inédito em grande parte do mundo: ao que nos consta, apenas na Alemanha, na França e no Canadá acusados de delitos semelhantes foram enviados à cadeia. A matéria é inovadora no Brasil, sendo rara a existência de um precedente legal em Tribunais Superiores; decisões existem somente de Tribunais inferiores.
A 12 de dezembro, no STF, o primeiro voto, dado pelo ministro-relator Moreira Alves, católico conservador empossado pelo general Ernesto Geisel, durante a ditadura militar[8], acatou a argumentação racista de Werner Becker, reafirmando que se os próprios judeus não se consideravam uma raça e sim um povo, o crime por discriminação pelo qual o réu fora condenado não poderia ser qualificado como delito de racismo. Diante deste voto espantoso, o ministro Maurício Corrêa[9], em um momento histórico, interrompeu o julgamento com um pedido de vista dos autos, entendendo que o conceito de racismo deveria ser abrangente, envolvendo preconceitos contra minorias, sejam eles por questão de cor de pele, etnia ou religião. Na leitura formalista da Constituição de 1988, que torna a prática do racismo um crime inafiançável e imprescritível, corre-se o risco de banir-se o racismo pela declaração formal da ausência de raças cientificamente identificáveis. Na leitura moral, a sociedade brasileira aceitou o desafio de entender o racismo como fenômeno sociocultural e de combatê-lo com as armas do arsenal jurídico. Escreveu, a esse propósito, o ex-ministro das Relações Exteriores da Administração Cardoso, Celso Laffer:
 
Com efeito, os judeus não são uma raça, mas também não são uma raça os brancos, os negros, os mulatos, os índios, os ciganos, os árabes e quaisquer outros integrantes da espécie humana. Todos, no entanto, podem ser vítimas da prática do racismo. Por isso discutir o crime da prática do racismo a partir do termo “raça” é  esvaziar o conteúdo jurídico do preceito constitucional. Significa, no limite, converter o crime da prática do racismo em crime impossível pela inexistência de objeto: as raças. A base do crime da prática do racismo são os preconceitos e sua propagação, que discriminam grupos e pessoa, a elas atribuindo as características de uma “raça” inferior, em função de sua aparência ou origem.[10]
 
Na sessão seguinte, o ministro Maurício Corrêa votou contra a concessão do Habeas Corpus, escorado nos pareceres de Cláudio Fonteles, Celso Lafer e Miguel Reale Junior, que contestavam a distorção conceitual proposta por Werner Becker. O voto do ministro Corrêa foi enfaticamente apoiado pelo ministro Celso de Mello, para quem “a discussão sobre a definição de raça e de povo é secundária, quando está em causa a defesa de qualquer preconceito ou discriminação contra a única raça que conta – a raça humana”. Em reação emocional, o relator Moreira Alves acusou Maurício Corrêa de “copiar” o parecer de Lafer (com a implícita insinuação da ascendência judaica deste jurista no descaso para com os outros pareceres, de conteúdo semelhante). Com a sessão conturbada, o ministro Gilmar Mendes pediu vistas no processo, que foi mais uma vez interrompido.
Devido à polêmica travada no STF, o advogado José Fernando Mandel tomou a iniciativa de requerer da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados de São Paulo (OAB-SPO) uma tomada de posição do Conselho Federal de Direitos Humanos da OAB Nacional. E o Deputado Lincoln Portela (PL/MG) propôs uma redação mais esclarecedora para o texto da lei que condena o racismo, de forma que haja uma punição dos crimes resultantes de discriminação ou preconceito. Para o deputado, é preciso tornar o texto da lei mais claro e preciso, para que não se abra o precedente de dar “sinal verde para o surgimento de neonazistas e anti-semitas”[11].
Na terceira sessão do processo, a 26 de junho, Gilmar Mendes discutiu longamente os conceitos de raça e de racismo, citando os diversos acordos internacionais contra o racismo assinados pelo Brasil, e os limites da liberdade de expressão prevista na Constituição Federal: “A discriminação racial levada a efeito pelo exercício da liberdade de expressão compromete um dos pilares do sistema democrático, a própria idéia de igualdade […]. A liberdade de expressão não se afigura absoluta no nosso texto constitucional”, pois houve ressalvas quanto à liberdade de informação, que deveria ser exercida de modo compatível como o direito à imagem, à honra e à vida privada (art. 5º, X). “Da mesma forma, não se pode atribuir primazia à liberdade de expressão, no contexto de uma sociedade pluralista, em face de valores outros como os da igualdade e da dignidade humana. Daí ter o texto constitucional de 1988 erigido, de forma clara e inequívoca, o racismo como crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII), além de ter determinado que a lei estabelecesse outras formas de repressão às manifestações discriminatórias (art. 5º, XLI)”[12]. Por fim, o ministro concluiu que a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul de condenar Siegfried Ellwanger foi adequada e proporcional e alcançou o fim almejado, de “salvaguarda de uma sociedade pluralista, onde reine a tolerância”. Ele disse estar evidente que os livros publicados pelo editor não continham simples discriminação, sendo textos que, de maneira reiterada, estimulavam o ódio e a violência contra os judeus. Votou, assim, contra o deferimento do pedido de Habeas Corpus.
O ministro Carlos Velloso pediu, então, antecipação de voto e observou que nos livros publicados por Ellwanger, os judeus são percebidos como raça, porque há pontos em que se fala em “inclinação racial e parasitária dos judeus”, “tendências do sangue judeu”, “judeus como culpados e beneficiários da Segunda Guerra”, entre outras. Assim, “a conduta do paciente implica prática de racismo, o que a Constituição considera crime grave e imprescritível”. Velloso também enfocou a matéria sob o ponto de vista do direito à liberdade de expressão, argumentando que embora seja garantia consagrada pela Constituição, não tem caráter absoluto: “Se há conflito aparente de direitos fundamentais, a questão se resolve pela prevalência do direito que melhor realiza o sistema de proteção de direitos e garantias inscritos na Lei Maior”. Votou contra o Habeas Corpus.
Em seguida, o ministro Nelson Jobim julgou que Siegfried Ellwenger não editou os livros por motivos históricos, mas como instrumentos para produzir o anti-semitismo. Rejeitou a linha proposta pela defesa, segundo a qual, sendo os judeus um povo e não uma raça, não estariam amparados pela Constituição Federal, em relação à imprescritibilidade do suposto crime de racismo. Conforme Jobim, a tese “parte do pressuposto de que a expressão racismo usada na Constituição teria conotação e um conceito antropológico que não existe”. O ministro considerou a matéria em julgamento um “caso típico” de fomentação do racismo: “Vejo nitidamente nas condutas traduzidas no acórdão e aquilo que está nos autos a evidente e clara destinação da prática daquilo que está coibido na Constituição”. Votou contra o Habeas Corpus.
A ministra Ellen Gracie iniciou seu voto pela definição de raça da Enciclopédia Judaica, editada no Brasil pela editora Tradição, do Rio de Janeiro. O verbete lido narra que “a concepção de que a humanidade está dividida em raças diferentes encontra-se de maneira vaga e imprecisa na Bíblia, onde, no entanto, como já acentuavam os rabinos, a unidade essencial de todas as raças é sugerida na narrativa da criação e da origem comum de todos os homens”. Ela concluiu ser impossível “admitir-se a argumentação segundo a qual se não há raças, não é possível o delito de racismo”. Votou contra o Habeas Corpus.
O ministro Antonio Cezar Peluso seguiu a maioria dizendo concordar com o ministro Nelson Jobim, para quem a definição de racismo deve ser pragmática: “A discriminação é uma perversão moral, que põe em risco os fundamentos de uma sociedade livre”. O ministro acentuou que, neste caso, o que lhe chamou atenção foi o fato de que o mesmo editor se tornou especialista na publicação de livros que instigam a discriminação: “E, portanto, isso tem o significado óbvio, do meu ponto de vista, que se trata de uma prática que contraria a tutela constitucional”. Votou também contra o Habeas Corpus.
Após o voto de Peluso, o ministro Carlos Ayres de Britto pediu vistas do processo, o que interrompeu o julgamento novamente. Houve também um pedido de vista antecipada do ministro Marco Aurélio, que expressou intenções de refletir melhor sobre a questão sob o ponto de vista da liberdade de expressão.
Celso Lafer, cujo parecer foi citado por diversos ministros do STF, entrevistado logo após a sessão, comentou o resultado parcial dos votos:
 
O ponto de partida de tudo foi o voto do Ministro Maurício Corrêa, foi ele que teve a intuição da importância do caso […].O voto dado também pelo ministro Celso Mello foi muito importante. E hoje nós tivemos vários votos. O do ministro Gilmar Mendes representa uma análise e uma construção jurídica perfeita, seja sobre o crime da prática de racismo, seja sobre o tema da interpretação constitucional quando há mais de um direito que precisa ser preservado, a dignidade da pessoa humana foi a opção que ele com toda a clareza colocou. Destaco também o voto do ministro Velloso, que fez referência a toda temática de direitos humanos e à relação entre o direito interno e o direito internacional nessa matéria. O voto do ministro Jobim foi mais curto, mas foi preciso na compreensão do que deve ser a interpretação constitucional. O voto da ministra Ellen foi de grande sensibilidade, muito agudo na percepção daquilo que é um valor muito importante para a comunidade judaica, em toda a reflexão que fez sobre o anti-semitismo e o racismo. Creio que o voto do novo ministro Cezar Peluso foi um voto no calor da hora, inclusive sem estudo prévio, mas motivado por aquilo que é a prática de racismo feita pelo editor Ellwanger, ou seja, não é a edição de um o livro ou de outro, é uma organização de livros, inclusive de sua própria autoria, deliberadamente voltados para propagação do racismo e do anti-semitismo, como racismo inequívoco. Tivemos uma decisão que será um leading case em relação ao tema, que transcende a comunidade judaica, sendo um voto importante para todos aqueles que são ou podem vir a ser objeto de discriminação e a mais perversa delas todas que é a do racismo. Entendo que a imprescritibilidade foi deliberada como política de direito pelo constituinte, com o objetivo de evitar a reincidência, justamente como se deseja no Brasil – e a Constituição de 1988 é clara neste sentido – a construção de uma sociedade fraterna sem discriminações[13].
 
Assistiam ao julgamento representantes ilustres da comunidade judaica brasileira: o ministro Jacques Wagner; o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer; o rabino Henry Sobel; o deputado federal Walter Feldman; Jack Terpins, presidente da Confederação Israelita do Brasil; Diane Kuperman, vice-presidente da Federação Israelita do Rio de Janeiro; Arthur Rotenberg, presidente da Associação Brasileira A Hebraica de São Paulo; Décio Milnitsky, advogado cuja atuação foi fundamental neste caso; além de Berel Aizenstein, Jacques Perlov, Bernardo Lerer (Confederação Israelita Brasileira – Conib), Lia Bergmann (B’nai B’rith Brasil), Armando Fonseca, Isaac Corcias (B’nai B’rith Brasília), Helena Druck Sant’anna, representando o advogado Hélio Sant’anna (B’nai B’rith Rio Grande do Sul), que iniciou o processo contra Castan há mais de uma década em Porto Alegre. As comunidades negra e cigana brasileiras também se fizeram representar em Brasília, e um dos líderes desta última disse, ao final da sessão, com lágrimas nos olhos, da importância desta decisão histórica para a defesa dos princípios e direitos do povo cigano e de todas as minorias.
Naturalmente, o resultado parcial dos votos, pendendo para a recusa do Habeas Corpus ao anti-semita, incomodou aqueles setores da sociedade que preferiam poder continuar a injuriar seus semelhantes sem serem, por isso, penalizados. Enquanto a decisão final era protelada, houve quem, na imprensa jurídica, defendesse a prescritibilidade do crime de racismo desde que os judeus fossem deles as vítimas. Assim, Osório Barbosa escreveu:
 
Nunca vi artigo da comunidade judaica condenando as execuções de crianças e idosos palestinos. Os palestinos pertencem a alguma raça? […] A indústria do Holocausto, (de) Norman G. Finkelstein (também integrante da comunidade judaica), demonstra o “rufianismo” de alguns a partir da causa dos judeus. Merece ser lido. […] A Constituição não pode ser aceita apenas na parte que me beneficia, ou ela é aceita em sua totalidade ou não serve em parte alguma. Sendo assim, já que me louvei nela para a defesa de minha tese, devo aceitá-la, também, quando protege os ‘criminosos’.
 
Ou seja: para o Sr. Barbosa, que leu em sua totalidade os milhões de artigos escritos pela comunidade judaica; e que, omitindo a execução dos civis israelenses pelos homens-bombas palestinos (que matam seus “inimigos” com prazer, após a gravação de vídeos caseiros documentando o feito “heróico” antes do “martírio” assassino), qualifica a morte de civis palestinos na guerra que estes movem contra os israelis de “execuções” (a sangue-frio, imagina-se), sem encontrar condenação às mesmas por parte da comunidade judaica (como se esta devesse assumir uma mentira como verdade), e lança Exército israelense, Intifada, Holocausto e comunidade judaica num mesmo saco, para que dele brote a sugestão de que todos os judeus são racistas pelo simples fato de existirem, e de que eles deveriam ser penalizados por isso. Quem é racista?
 Ainda em julho de 2003, manifestou-se na imprensa de consumo um certo “bancário e escritor” Fernando Al-Egypto, sediado no Rio de Janeiro, alegando que
 
racismo trata de agressão a raças e não a religiões. Gente que ofende negros, brancos, vermelhos, amarelos, índios ou outra raça qualquer, aí sim, está cometendo um ato de racismo. Já para quem ataca religiões ou religiosos, sejam quais forem, deveria se criar então a ‘Lei do crime de religiosismo’. Raça jamais foi religião, não se misturam, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, já que existe gente de todas as raças professando a mesma ou várias religiões distintas, portanto a Lei está sendo mal aplicada através de ajustes descabidos e interesses inconfessáveis. Para piorar a tal Lei, racismo (ou religiosismo) não poderia ser considerado crime, e sim antipatia ou aversão.
 
Aqui, o “bancário e escritor”, que tanto insiste na existência das raças (negra, branca, amarela, vermelha e até uma redundante raça índia), esquece (deliberadamente?) da famosa “raça semítica”. E ignora (deliberadamente também?) a evolução histórica do antijudaísmo (preconceito de fundo religioso) para o anti-semitismo (preconceito de fundo racial): os adeptos do racismo dirigido contra os judeus (membros da “raça semítica”, segundo os antropólogos racialistas) não se contentam mais (como a Inquisição fingia contentar-se) com a conversão religiosa dos praticantes do judaísmo; eles buscam, desde Hitler, o extermínio dos judeus pela postulação da existência de um “sangue judeu”, transmitido hereditariamente. Assim, a evidente  “antipatia” ou “aversão” que os anti-semitas manifestam em relação aos judeus não é uma antipatia ou uma aversão à religião judaica simplesmente; é uma aversão ou uma antipatia por aqueles que a encarnam. Essa “antipatia” ou “aversão” transcende a razão e revela-se, segundo seus próprios termos, em incontroláveis manifestações físicas contra aqueles seres humanos que se tornam objetos dessa tara. Daí o caráter doentio do anti-semitismo, que ao se tornar público, deveria ser coibido, sob o risco de gerar, como gerou, ao longo da História, perseguições, linchamentos, pogroms, massacres e, em sua forma mais extrema, o genocídio consumado no Holocausto.
Também em julho de 2003, Ellwanger, em nome do organismo revisionista auto-intitulado Centro Nacional de Pesquisas Históricas[14], enviou ao ministro Celso de Mello, com cópia para os demais ministros do STF, carta “anônima” em que afirmava:
 
No dia 9/4/03, o informativo “Migalhas” de assuntos jurídicos e gerais, via Internet, confirmou que o Exmo. Sr. Min. Maurício Corrêa havia solicitado um Parecer a respeito do meu (grifo nosso) HC 28424 ao Rabino Henry Sobel, após a sessão do STF de 12/12/02, que recebeu o voto favorável do Exmo. Sr. Ministro Moreira Alves, Relator do mesmo (…) O Sr. Rabino aproveitou a grande oportunidade oferecida pelo Min. Corrêa, convocando imediatamente o advogado sionista Décio Milnitsky, com o qual subscreveu um Memorial, que foi entregue para promover as opiniões de outros três sionistas (assim considerados pelo próprio rabino): Celso Lafer, Izidoro Blickstein (sic) e Sônia Ramagem, englobadas no longo Parecer entregue ao STF como “contribuição”. Esclarecemos que SIONISMO é um movimento político, ideológico, nacionalista e racista voltado TOTALMENTE aos interesses não do nosso Brasil mas de Israel. O racismo e a descriminação (sic) em Israel, além dos palestinos, atinge até os negros de religião judaica vindos da Etiópia, os falashas, impedidos, pela cor, de residir nas proximidades de bairros de israelitas brancos, para não desvalorizar seus imóveis. Num país multirracial como nosso, onde convivem e se entrelaçam númeras (sic) raças, o Rabino Sobel, numa expressão máxima de racismo, de preconceito e de repulsa ao país que o acolhe há mais de 30 anos, ao ser entrevistado pela Revista IstoÉ, de 1/8/2001, perguntado sobre “a possibilidade de sua filha vir a namorar e até casar com alguém não judeu”, respondeu claramente: “Ficaria muito triste. Porque a minha lealdade para com o judaísmo é número Um”. O Exmo. Sr. Dr. Luiz Carlos de Castro Lugon (Relator convocado), nos autos da AP. Nº 96.04.19980-3-RS-1ªT.-do TRF, assim se manifestou, em 12/11/1996, por ocasião do julgamento de crime de preconceito de raça ou cor, em que figurou como denunciado Irton Marx: “Uma das marcas mais fortes do racismo é a condenação aos casamentos multi-raciais (sic), que parte da crença da pureza étnica, tão a gosto do nazismo e que tantos crimes contra a humanidade ensejou”. Solicitamos uma rápida reflexão sobre o que aconteceria, com nossa Pátria, caso os brasileiros descendentes de italianos, alemães, japoneses, portugueses, espanhóis, árabes, poloneses, ucranianos, argentinos, uruguaios, etc. etc. agissem da forma apregoada por SOBEL & Cia. Fazemos referência ao jornal “O Estado de São Paulo”, do dia 5/5/03, onde pretendem transformar em polêmica nacional a opinião do Arcebispo D. Dadeus Grings (que trabalhou durante muitos anos no Vaticano), acusado de racista, por haver escrito que o número de judeus, vítimas do nazismo, teria sido um milhão e não de seis milhões, completando que as grandes vítimas do nazismo não foram os judeus mas os cristãos, e queixando-se do fato dos judeus insistirem nas suas vítimas, como se tivessem sido os únicos a sofrerem sob o regime nazista (…). É surpreendente solicitar um Parecer referente ao HC 82424 justamente para pessoas ligadas a um poderoso movimento político e RACISTA ESTRANGEIRO que persegue implacável e impunemente o ex-industrial e historiador Siegfried Ellwanger, de 75 anos, dentro de sua própria Pátria, desde 1987, sem o menor respeito aos seus longos estudos e pesquisas, através de contínuos processos judiciais e boicotes que efetuam, nas livrarias, aos livros de sua editora, com os quais não concordam e desejam incinerar – maioria inclusive de autores laureados das nossas Academias de Letras – usando as facilidades que têm na mídia para divulgar difamações, calúnias e mentiras a respeito do mesmo. Está havendo um inaceitável e impune desrespeito a pesquisadores brasileiros, cujas opiniões procuram impedir para que cheguem ao conhecimento do nosso povo, apesar de não serem contra nenhuma raça ou povo, mas apenas contra histórias, que não mais se confirmam, porém que o Sionismo impôs ao mundo, há mais de meio século e diariamente repetidas, fato que consideramos ser a maior lavagem cerebral de todos os tempos. O sionismo é atacado por milhares de Rabinos e judeus no mundo (…) que não são apenas contra o Sionismo, mas contra a própria existência do Estado de Israel, que consideram um câncer para os judeus (…). Ele (Castan) é perseguido por conferir e revelar trapaças históricas sionistas e não por racismo. Os revisionistas não são ‘negacionistas’ nem estão animados por sombrias intenções. Procuram dizer o que se passou e não o que NÃO se passou. O que anunciam é uma boa nova! A vontade do movimento sionista é atirar na fogueira seus mais de 30 anos de exaustivos estudos/pesquisas/conhecimento, objetivando ficar na privilegiada posição de inatacáveis vítimas. Caso fosse confirmado esse objetivo Sionista ESTARIA ACABADA A LIBERDADE DE ESCREVER SOBRE ASSUNTOS DE HISTÓRIA EM NOSSO PAÍS QUE ENVOLVESSE (sic) JUDEUS (…).
 
Castan aqui retoma as já notórias táticas do anti-semitismo pós-Auschwitz, que se colocou a seguinte questão: como continuar a ser nazista depois da derrota do nazismo, ou dito de outro modo, como voltar a perseguir os judeus depois do Holocausto? A resposta que os adeptos do ‘IV Reich’ encontraram foi simples: negando o Holocausto; acusando o sionismo de ser um movimento racista; identificando os judeus ao “sionismo racista”; perseguindo os judeus enquanto  “sionistas racistas”.
O caso Castan foi retomado no dia 27 de agosto de 2003. Surpreendentemente, talvez sensibilizado pela campanha revisionista, o ministro Carlos Ayres Britto, recém-empossado pela Administração Lula, propôs Questão de Ordem por não ter sido mencionado, em momento algum no processo, que a Lei Federal 8.081, de 21 de setembro de 1990 – que qualificou como crime a prática de racismo pelos meios de comunicação social – é posterior ao crime atribuído ao editor. Conforme explicou, a norma retroagiu para alterar a Lei Penal 7.716/89, ao acrescentar a ela o artigo 20, que previu pena de reclusão de 2 a 5 anos para o ato de “praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza a discriminação ou preconceito de raça, religião, etnia ou procedência nacional”. Para o ministro Britto,
 
o pólo processual ativo do processo, na instância originária, tinha o dever de provar que o delito se materializara após a entrada em cena do dispositivo penal increpador. E tinha o dever de provar porque até a data de vigência da Lei 8.081 o preconceito racial, enquanto crime, não estava associado à sua veiculação pelos meios de comunicação ou publicação de qualquer natureza.
 
Dois outros dispositivos legais foram citados pelo ministro Britto para justificar sua tese sobre o dever da “instância acusadora”: o inciso XXXIX do artigo 5º, da Constituição Federal, e o artigo 41, do Código de Processo Penal. O primeiro estabelece que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. O segundo, que “a denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou os esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas”. O ministro Britto referiu-se às datas de publicação da Lei Federal 8.081/90, com as datas de edição e/ou reedição, em 1989, dos livros objeto da Ação Penal aberta contra o editor para afirmar que não houve demonstração da anterioridade da Lei 8.081/90 em relação às demais. Carlos Britto defendeu, então, interpretação favorável ao editor “pela clara razão de que vigora em nosso ordenamento jurídico o princípio da presunção de inocência em matéria penal”. Observou que o entendimento decorre do que estabelece a Constituição no inciso VII, artigo 5º, ao dizer que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. E destacou: “O direito de não ser racialmente discriminado é tão direito humano quanto a garantia da licitude da conduta não previamente incriminada por lei”. Reconhecendo a falta de justa causa para a instauração da Ação Penal contra Ellwanger, propôs que a Questão de Ordem fosse resolvida pelo deferimento do Habeas Corpus a ser concedido de ofício “pela inovação da causa de decidir: a atipicidade da própria conduta do paciente à época dos fatos noticiados na denúncia”. Para arrematar sua argumentação, o ministro Britto leu trechos selecionados de três obras da Editora Revisão nas quais é dito que aquelas obras não são contra os judeus e sim “contra o sionismo”.
Em sua grave decisão, o ministro Britto desconsiderou o fato de que o anti-semitismo pós-Auschwitz sustenta que o sionismo é uma forma de “racismo” (sendo, portanto, racistas os judeus e não aqueles que os perseguem); que o Holocausto nunca existiu (convertido em “mentira” imposta ao mundo pelas “mídias judaicas” para extorquir dinheiro dos “pobres alemães”, a serem inocentados para sempre dos crimes nazistas); que os “judeus sionistas” conspiram para dominar o mundo (justificando a perseguição e o extermínio dos mesmos); que os “judeus sionistas” são malignos (caracterizando a visão essencialista do anti-semita). Ao endossar pelo menos uma dessas teses e conceder voto favorável ao Habeas Corpus de Ellwanger, o ministro Britto comprometeu-se com o que de pior a humanidade já produziu. De resto, ele ignorou (deliberadamente?) o fato de que as obras de Castan nunca deixaram de ser comercializadas em livrarias, feiras de livros e pela própria Editora Revisão via Internet, desde a década de 1980 até hoje, de forma continuada, à revelia da lei, e não só por Castan, mas por todos os livreiros e sítios coniventes ou assumidamente neonazistas.
Assim, atualizado em maio de 2003, com links para uma centena de organismos e empresas neonazistas como Adelaide Institute, Libre Opinion,White Revolution, Diehard Records e Mare Nostrum (“portal nacionalista e revisionista”), sintomaticamente encabeçados pela Rádio Islam, o sítio de Ellwanger (com 92.016 visitantes em 1/9/2003) fornece gratuitamente versões on line de seu Holocausto judeu ou alemão?; de Minha luta; de Hitler; e de clássicos do anti-semitismo, como Os protocolos dos sábios de Sião, de autoria anônima; e O judeu internacional, de Henry Ford, disponibilizando farto material escrito e audiovisual (panfletos, discursos, cartazes, banners, imagens, hinos, canções) de conteúdo racista. Para se ter uma idéia da aberração criminosa desse sítio, um dos artigos nele incluído afirma que

 

O Brasil é um país totalmente dominado pela pior espécie de judeus: os banqueiros. A dominação, apoiada fortemente no simbolismo hebraico, está presente em grande parte da economia e cultura do país […]. Na mídia, telenovelas, telejornais, revistas, etc., a cada dia são mais visíveis a cultura, os símbolos e a defesa dos interesses judaicos. O Banco Central do Brasil, responsável pela circulação do papel-moeda, não poderia ser exceção.

 

O artigo apresenta uma imagem da nota de 20 reais na qual se destaca uma enorme estrela de Davi supostamente formada pelos galhos que sustentam o mico-leão dourado denunciado como símbolo oculto do judaísmo (“mico-leão dourado!”):

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Grifando com tinta dourada apenas os galhos que interessam à sua visão distorcida, Ellwanger (?) obtém um esboço de estrela de Davi já que, segundo afirma, “para diminuir a visibilidade, uma das pontas da estrela foi omitida”. Contudo, esse traçado enlouquecido basta ao seu verdadeiro propósito, que é o de associar os judeus à imagem do símio, tal como ele surge na imagem seguinte – profanadora de um símbolo sagrado para os judeus – apresentada na mesma página:

 

 

 

 

Logo Ellwanger (?) passa a “denunciar” formas de estrelas de Davi “presentes” na textura da cédula e até nos minúsculos olhos do mico-leão:

 

[…] ampliando os olhos do animal-símbolo  (sic) podemos observar que a pulpila (sic) do mesmo é construída com formas que lembram a Estrela de Davi.

 

E o doentio artigo termina com uma apoteose de paranóia:

 

Próximo dos pés do animal-símbolo (sic) são encontrados rostos de personagens criados pelos judeus para “entreter” os não-judeus. Um deles aparenta ser um personagem dos desenhos animados, enquanto o outro rosto pertence a Merilyn (sic) Monroe.

 

 

 

 

             
 
 
 
 
 
           
A distorção mental do anti-semita não tem limites. Mas aqueles elementos irracionais presentes no anti-semitismo, que para homens de razão poderiam até parecer cômicos, são capazes de produzir, sobre uma massa inculta já modelada por uma cultura cristã tradicionalmente anti-semita, uma influência de efeitos nocivos, que se manifestarão em ações persecutórias, as quais, como na Alemanha dos anos 1930-40, podem levar à exclusão social e, no extremo, ao extermínio das minorias classificadas como “tirânicas”, “poderosas”, “influentes” e “dominadoras”. A condenação de Ellwanger seria o primeiro passo dado pela Justiça brasileira na repressão do crime de racismo que está na origem dos genocídios, e nisto ela seria pioneira na América Latina, em que pese dois votos já comprometidos com a liberdade de difamar judeus, reivindicada por um nazista, dados por um ex-ministro empossado pela ditadura militar e por um ministro recentemente empossado pela Administração Lula.
Após o voto do ministro Carlos Britto, o julgamento foi suspenso mais uma vez (a quarta), agora com o pedido de vista do ministro Marco Aurélio. Para que o caso Castan seja definitivamente encerrado, faltam os votos de dois ministros: Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence. A decisão final marcará o futuro das minorias no país, constituindo jurisprudência sobre o assunto, a ser respeitada por todos os tribunais, em qualquer instância. Mas ainda que a condenação seja confirmada por 9 x 2 (ou por 8 x 3, ou ainda por 7 x 4), os verdadeiros democratas devem tomar consciência do perigo que o anti-semitismo representa: em primeiro lugar para os judeus e, logo, para a democracia, uma vez que o anti-semitismo não visa apenas os judeus, mas todos os democratas, constituindo a ponta de lança do totalitarismo. Em nosso tempo, este perigo é maior que nos tempos de Hitler, onde a produção textual predominava. Hoje não basta proibir a propaganda racista contida em livros, jornais e panfletos, para enquadrar os neonazistas. Os organismos dedicados aos Direitos Humanos devem enfrentar o novo fenômeno do racismo virtual. Os neonazistas modernizaram-se rapidamente, agindo dentro da cultura audiovisual, dedicando-se, cada vez mais, à distribuição de vídeos e CDs e difundindo sua propaganda em mais de 2.200 sítios na Internet[15], para milhões de usuários em todo o mundo. As editoras revisionistas podem ser fechadas: enquanto a Internet permanecer aberta à disseminação das sementes do Mal será sempre possível ao nazismo ressurgir de repente, a partir do universo virtual que se desenha nas mentes conectadas, adquirindo realidade de um momento para outro, materializando-se subitamente e rapidamente solapando as democracias anestesiadas, num gigantesco black-out das consciências.

[1] Cf. BRENER, Jayme e CAMARGO, Claudia. Nazismo no ar. In: Isto é, n1261, 1/12/1993.
[2] Art. 20 Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional:
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.
§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fim de divulgação do nazismo:
Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.
§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial sob pena de desobediência:
I – o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;
II – a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.
§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido.
 
[3] Cf. Folha de S. Paulo, 18/10/00.
[4] O Tempo, 27/10/2000; 1/2/2001.
[5] Agência Folha on-line, 5/04/00.
[6] Julgamento de nazista no STJ envolve jogo de palavras, in Revista Consultor Jurídico, 9/7/2001.
[8] Ele se aposentaria em abril de 2003. Lula indicou, para substituí-lo, o jurista negro Joaquim Benedito Barbosa Gomes, que ficou, contudo, impedido de votar porque seu antecessor já votara no caso.
 
[9] O ministro Maurício Corrêa é agora o presidente da corte suprema. A ele se deve o Programa Nacional de Direitos Humanos, as ouvidorias das polícias, o Programa de Proteção às Vítimas e Testemunhas, a luta contra o trabalho infantil, os direitos dos homossexuais, a luta contra o racismo.
 
[10] LAFFER, Celso. Racismo: o STF e o caso Ellwanger, in: Tribuna Judaica, 3 a 17/8/2003, p. 24.
[11] O projeto de lei nº 829/2003 dá uma nova redação ao art 1º da lei nº 7.716/89 de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor:
 
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º – O Art. 1º da Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989, passa a viger com a seguinte redação:
“Art 1º – Serão punidos, na forma da lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional e povo”.
Art. 2º – Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 3º – Revogam-se as disposições em contrário.
 
[12] Também para Dalmo Dallari, “quando o exercício de um direito como o da livre expressão atenta contra a dignidade humana deixa de ser um direito, torna-se abusivo, um falso direito”. Dallari ressaltou, a propósito do caso Castan, que o direito à livre expressão é de interesse de toda a sociedade, de todos os cidadãos, mas deve ser limitado pelo respeito à dignidade humana, também garantido pelo artigo 1º, inciso III Constituição Federal.
 
[13] Depoimentos recolhidos e divulgados por Lia Bergmann, Assessora de Comunicação da B’nai B’rith do Brasil/Judaica.
[14] Fundado em 08/06/1992 – Reg. Nº 16.350 – CGC 97.264.626/001-47, sito à Rua Dr. Voltaire Pires, 300 Cj.2- b – Cep 90640-140Porto Alegre – RS – Brasil.
[15] Segundo o especialista Shimon Samuels, na entrevista A perigosa relação entre o ódio e a Internet, publicada em www.firgs.com.br.